Imagem do filme O Espelho (1974) de Andrei Tarkovski
Andrei Arsenievich Tarkovski nasceu em 1932 na vila de Zavrajié, província de Ivanovo, URSS, filho do poeta e tradutor Arseni Tarkovski e de Maria Vishniakova, estudante de literatura. Tarkovski talvez seja o mais aclamado cineasta russo da segunda metade do século XX. Bergman idolatra-o. Muitos outros se impressionam com a sua obra: Kurosawa, Kiarostami, Wim Wenders, Theo Angelopoulos, Lars von Trier.
A infância do realizador é marcada pela separação dos pais e, pouco mais tarde, pelas agruras da guerra. Tarkovski, a mãe e a irmã abandonam Moscovo, onde viviam, na altura da evacuação da cidade. Tornam à capital em 1943 onde Tarkovski prossegue os estudos. Não se revela bom aluno, embora se interesse por música e poesia. Adoece com tuberculose em 1947, permanecendo internado durante alguns meses. Entre 1951-52 estuda árabe no Instituto de Estudos Orientais, mas desiste do curso para participar numa longa expedição como prospector de metais no interior do país. É durante esse período que decide estudar cinema. Ingressa então no prestigiado Instituto de Cinematografia de Moscovo.
A Infância de Ivan (1962) é o seu primeiro grande filme depois dos primeiros projectos escolares. Seguem-se Andrei Rublev (1966), Solaris (1972), O Espelho (1974) e Stalker (1979), todos eles produzidos na URSS. Mas os problemas com as autoridades do regime agravam-se gradualmente ao ponto de Tarkovski resolver não trabalhar mais sob o jugo dos censores e dos críticos soviéticos. Nostalgia (1983), escrito com Tonino Guerra, é produzido em Itália e o seu último filme, O Sacrifício (1986), na Suécia. Tarkovski morre em Paris, pouco tempo depois da estreia, vítima de cancro do pulmão.
Tarkovski não é um realizador fácil. Pode referir-se o carácter enigmático dos seus filmes, o acentuado pendor místico de algumas obras, pode falar-se de um cinema, dir-se-ia, transcendente. Não é possível, no entanto, não nos comovermos pelo encanto de muitas cenas, não sermos atraídos pela duração mágica dos planos, pela harmonia do seu encadeamento e pelos mais belos movimentos de câmara de todo o cinema. Tarkovski parece ter criado um estilo próprio. Reconhecemos a mestria na composição das imagens, a duração prodigiosamente equilibrada dos planos, de tal modo que a diferença de apenas um segundo talvez bastasse para os desvirtuar, a cuidadosa incorporação do som e da música, enfim, a criação de notáveis quadros cinematográficos. Se identificamos estes aspectos formais, igual importância adquirem as ideias em que assentam os seus filmes. Todavia, só se pode dizer que o seu cinema é intelectualizado na medida em que é um trabalho profundamente pensado. Resulta de uma constante procura, deriva de preocupações éticas, estéticas, de inquietações metafísicas. Mas Tarkovski é acima de tudo uma criatura singularmente sensível, alguém que imprime nos seus filmes uma espécie de terna comoção pela vida e que com uma delicada sabedoria explora essas zonas de fronteira entre a natureza, o homem e o divino. Dificilmente achamos outro realizador com a mesma devoção à sua arte.
Esta imagem pertence ao filme O Espelho, imagem que de imediato nos remete para as «paisagens humanas» de Bruegel. Neste filme com referências autobiográficas (a ausência paterna, a guerra, a mãe e as duas crianças, o internamento hospitalar) somos envolvidos por uma perturbante sequência de cenas dada a sua estrutura descontínua e não cronológica. Assistimos às recordações conscientes e involuntárias de um personagem que evoca os momentos essenciais da sua vida, a um desenrolar aparentemente incoerente de pensamentos e memórias; percorremos o mundo desse personagem-poeta enquanto criança, adolescente e adulto. Há pois, não só neste filme, mas ao longo de toda a obra, como que uma poética do cinema a guiar o realizador, algo cujos princípios não sabemos ao certo formular.
Para Tarkovski, no entanto, a base do cinema, a sua força organizadora, é o tempo, sendo isso que o diferencia de outras artes. O cinema distingue-se pela forma real, visível, que dá ao tempo. É o decorrer do tempo que é captado em cada plano, um tempo que é preciso respeitar, um processo temporal específico, um ritmo manifestado pela «vida» das coisas aí registadas. Cabe ao cineasta honrar esse tempo de modo não premeditado, mas espontaneamente, de acordo com a procura de um ritmo distinto, de acordo com a sua percepção dos «movimentos da vida». Este ritmo não é criado na mesa de montagem, nem depende da duração de cada plano, sendo antes determinado pela «consistência do tempo» que os percorre, pela sua «intensidade», ou seja, pelo que se poderia chamar de «pressão temporal». Quando se é fiel a esta «pressão temporal», a montagem de um filme acaba por juntar parcelas que parecem unir-se naturalmente. Por outro lado, este tempo só se torna tangível quando pressentimos algo de significativo e verdadeiro, algo que se estende além da imagem cinematográfica. E quando se respeita o ritmo que pulsa nos diversos vasos sanguíneos de um filme, tornando-o vivo, há sempre mais ideias nele do que aquelas que o realizador desejou revelar, permitindo-nos, enquanto espectadores, dar-lhe novas formas e dele extrair novos significados.
Pudesse um óleo de Brughel animar-se de movimento. Pudesse a fotografia animar-se com este tempo tarkovskiano, pudesse a imagem fotográfica libertar-se da sua própria clausura, da sua imobilidade, da frieza do instante. Certa pintura, como acontece, na verdade, com Brughel, anima-se de movimento e de vida. Mas a fotografia confere uma espécie de morte à existência do mundo, no sentido de que está morto tudo aquilo não animado pelo decorrer do tempo. A imagem fotográfica parece afastar-se dos seus ritmos e durações, incapaz de revelar o kínēma, o movimento das coisas. Uma fotografia bem sucedida talvez seja então a imagem que se desdobra, que se multiplica, da qual se desprendem e encadeiam, sucessivamente, novas imagens — os fotogramas do pulsar do tempo.