O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.
Verso do poema “Gargalhada”, de Cecília Meireles
Há uns dias, o Ípsilon trazia um depoimento de Irene Vallejo, filósofa e escritora espanhola, feito a partir de uma entrevista sobre a Inteligência Artificial (IA) e o que a aproxima e distancia do humano e da máquina. No título, em letras grandes, o essencial: “As máquinas são muito sérias. Não compreendem a brincadeira, a ironia”. Dizia a pensadora que “o sentido de humor, as piadas, a ironia, o jogo de significados são as coisas mais difíceis para as máquinas compreenderem e reproduzirem”. Aparentemente, a Inteligência Artificial não consegue entrar numa brincadeira, nem ler ironia. É difícil programar uma máquina para dizer uma coisa que quer significar o seu contrário. Concluía Vallejo que “talvez o humor e a comédia tenham que ver com o que é mais profundamente humano, pois são aquilo em que as máquinas têm mais dificuldades”.
Há umas semanas, num debate com alunos universitários sobre o humor como forma de resistência e demonstração de descontentamento, um aluno perguntava: para que serve o humor? Se pensamos em dar às máquinas sentido de humor, talvez seja esta a pergunta para um milhão: porque é que nos rimos? Segui a tendência e fiz à Inteligência Artificial a pergunta que o aluno fez aos oradores. A resposta chegou rapidamente, com as palavras a surgirem no ecrã, em sequência, umas atrás das outras.
“O humor desempenha várias funções importantes na vida humana, tanto do ponto de vista individual quanto social. Aqui estão algumas das principais funções do humor: 1) Alívio do stress: O humor pode servir como um mecanismo para enfrentar e ajudar as pessoas a lidar com o stress e as pressões da vida quotidiana. O riso liberta endorfinas, que são substâncias químicas no cérebro, que promovem sentimentos de prazer e bem-estar. 2) Fortalecimento de relacionamentos: O humor é uma ferramenta social poderosa. Partilhar risos e piadas pode fortalecer os vínculos sociais, melhorar relacionamentos e criar um sentido de comunidade. 3) Comunicação e expressão: O humor é uma forma de comunicação. Piadas, sarcasmo e ironia são maneiras de transmitir mensagens de forma envolvente e memorável. O humor pode tornar tópicos sérios mais acessíveis e facilitar a discussão de questões difíceis. 4) Melhoria do ambiente de trabalho: O humor no local de trabalho pode criar um ambiente mais positivo, reduzir o stress e melhorar os relacionamentos entre colegas. Pode aumentar a criatividade, a produtividade e a satisfação no trabalho. 5) Melhoria da saúde mental: O riso é frequentemente associado a benefícios para a saúde mental. Pode ajudar a reduzir a ansiedade, combater a depressão e melhorar o estado de espírito. 6) Quebra de tensão: O humor pode quebrar a tensão em situações desconfortáveis ou difíceis. Em alguns casos, o riso pode ser uma forma de lidar com a adversidade. 7) Estímulo da criatividade: O humor, muitas vezes, envolve uma visão única ou uma reviravolta inesperada. Pode estimular a criatividade ao encorajar as pessoas a pensar de maneiras diferentes e a ver situações sob uma nova perspetiva. 8) Entretenimento: O humor é uma forma de entretenimento amplamente apreciada (comédias, piadas, sátiras e paródias). Desempenha um papel importante na indústria do entretenimento, proporcionando prazer e diversão. Em resumo, o humor serve como uma ferramenta multifacetada que contribui para o bem-estar emocional, o fortalecimento de relacionamentos, a comunicação eficaz e a criação de ambientes mais positivos em várias áreas da vida”.*
É tudo verdade. Mas, naquele dia, respondi sem a ajuda da Inteligência Artificial, ainda que usando uma outra ajuda: citei a melhor resposta que já ouvi à mesma pergunta, dada pelo Ricardo Araújo Pereira, numa entrevista feita há uns anos. A resposta dele é o ingrediente que falta à IA: o humor é aquela criança de sete ou oito anos que fez uma asneira, leva uma palmada da mãe, olha para ela nos olhos e responde: “não me doeu”. Resolve alguma coisa? Não. É verdade? Também não. Doeu e não foi pouco (no rabo, no coração e no orgulho). Mas, ao menos, a mãe não leva a melhor. O humor é o que nos fica dessa criança de sete ou oito anos que acabou de levar uma palmada. Sempre que usamos o humor, estamos a olhar para a vida nos olhos e a dizer-lhe “não me doeu”. Fazermos de conta, pelo tempo de uma piada, que isso muda alguma coisa, ajuda? Nem por isso. Vai continuar a doer, durante muito tempo, talvez para sempre. Mas, ao menos, a vida não leva a melhor. O riso é a nossa pequena vitória sobre a injustiça e o absurdo. Há, em cada gargalhada, um ato de resistência. E é uma forma corajosa de luta: não só rejeita vergar-se, como rejeita a resposta fácil da amargura.
A Avó Florinda, ribatejana de gema, tinha uma expressão para isto: ginete. Já adulta, vim a descobrir que, no dicionário, um dos significados para ginete é cavalo de raça – e era nesse sentido que ela usava a expressão: “ela tem ginete” podia ser traduzido por “ela tem raça”, mas também por “ela não deixa que a vida leve a melhor”. O meu pai dizia que ginete é a tradução ribatejana da expressão guts, em inglês. É bem capaz de ser. Quando Irene Vallejo diz que o humor tem a ver com o que é mais profundamente humano, acho que é disto que a filósofa está a falar: da capacidade de resistir; de renascer no riso que acorda o que, em nós, ainda é esperança.
Rir é resistir. E não há nada mais humano do que a resistência, porque ela resulta de um encontro íntimo com a mais profunda fragilidade. Quando esse encontro acontece, it takes guts. Ou, como dizia a Avó Florinda, é preciso ginete. E muita capacidade de nos rirmos, como quem diz à vida: “não me doeu”.
* Resposta integral do ChatGPT à pergunta “Para que serve o humor?”, revista pela autora.