Número 29

25 de Fevereiro de 2023

SEPARATA OSSO 2

O rapaz da corneta

ALEJANDRA PARR

O rapaz da corneta, 2ª edição

Para os leitores da Osso

No fim, o que perdura, o dry down de Alejandra Parr, é a ideia jubilatória de viver, o corpo dela como um instrumento de cordas que deve ser tocado com rigor e paixão, aquilo a que Melville chamou de espírito oceânico.

(um leitor da 1ª edição)


1.

Acordo logo existo

Tomo posse dos meus sentidos

E em seguida

dis cinestesia

tento eliminá-los

um

a

um


2.

Im propriocepção

Estou imóvel

jacente

o meu corpo pesa

Perco os dedos

as unhas com o teu DNA

os pulsos que algemaste

perco um braço

e o abraço

Os pés enrolam-se nos calcanhares

como peúgas

Sou só duas mamas

que comprei

um dia

Uma vaga impressão no ventre

Umas cuecas húmidas

que de noite afastaste

para uma rapidinha

Sou um prato de spaguetti

no lugar do coração

animando-se como

Ascaris lumbricoides

E em breve nada

Só esta cabeça inquieta

Que com a cabeça posso eu bem


3.

A linha que une os meus mamilos

passa pelo terceiro botão

desapertado


4.

Sierpinski

Uma linha de tensão une

a minha púbis

à ponta dos meus pés

estirados

As pernas

afastam-se

mantendo a tensão

e alargam

lentamente

os ângulos internos

deste triângulo

Alongo-me

isósceles

O meu centro

começa a pulsar

recursivamente

Rolam pequenos triângulos

ao longo das coxas


5.

A linha que une os meus mamilos

começou a girar

devagarinho


6.

Ventre

A primeira vez que ele entrou no meu duche

ajoelhou e com as mãos unidas

afastou-me as pernas

Disse és como a deusa grega

das fontes de Meteora

aqui onde a água desce no teu ventre

Engraçado que nunca me vi assim

uma deusa grega

e embirro com Tetis

a que enfeitiçou o Gama

Ele disse então que o importante na frase

era o meu ventre

E já bebia das águas revolutas


7.

No duche

de joelhos

como o eremita de pedra

de arte sacra

que tenho na cozinha

com as mãos em concha

humildemente

quase sem me tocares

bebes da minha água

escorrente


8.

Foi na guerra Peninsular

Uma companhia de infantaria fez-me cativa

por erro de avaliação

Eu não falava o dialeto deles

as cores da minha roupa confundiram

o  sargento-chefe

Esperava-me uma humilhação

O que os brutos fazem às mulheres

cativas

em todas as guerras

e na Peninsular

Estavam cansados do combate

O primeiro a rasgar-me foi

o sargento-chefe

Baixou as calças da farda nº2

(fora uma batalha especial)

e ficou a olhar as montanhas

e depois as mãos sujas de sangue

Chamou o oficial de ligação

e este o responsável de transmissões

e o oficial médico

e o capelão

Todos de calças na mão

à minha frente

pávida cativa

Chamaram então o rapaz da corneta

E ele tocou uma música linda

tão límpida e cristalina

que se ouvia nas linhas inimigas


9.

No princípio da tarde entrei no bosque e detive-me logo na primeira clareira. Sentei-me, primeiro num tronco de árvore recoberto de musgo, depois na terra. Estavam 24 graus e não se via ninguém, de tal forma que ao fim de algum tempo despi-me e apeteceu-me ficar como o personagem de Michel Tournier em Sexta Feira ou os Limbos do Pacífico. Levava o livro de Santa Catarina de Siena, uma curta vida de jejum, ativismo papal, autoflagelação e conversas com Deus.

E deitada no tapete de folhas de carvalho, com as árvores

e o céu como teto, pensei em Caterina de Giacomo di Benincasa, que viria ser conhecida por Santa Catarina de Siena. Pensei nela e no azul violento do céu. Nela e nos moscardos, nos besouros e nas borboletas. Nela e nos carvalhos e nos amieiros. Nas aranhas e nos pequenos insetos alados que pousavam nos meus dedos. Nela e nas felosas ou, mais alto, no milhafre. Perturbada pela claridade, concentrei-me no jejum de Caterina, ordenado por Deus

e num sentido que pudesse dar ao meu próprio jejum, que me deixa tão frágil.

E por mais que os meus olhos se perdessem nas folhas dos carvalhos, nas bolotas, no firmamento, era a metade do rosto de Caterina que os ramos mais altos, refletindo a luz, pareciam desenhar. 


10.

O começo do mundo ( work in progress)

(o corpo das mulheres é uma construção laboriosa do desejo dos homens)

À força de pensares

de olhares

de tocares

À força de sentires

de beijares

de lamberes

de chupares

de aspirares

À força de meteres

de tirares

À força de entesares

de molhares

de lavares

de voltares

À força de gemeres

de calares

de falhares

À força de enlaçares

de roçares

de esfregares

À força de cheirares

de suares

de sonhares

de escreveres

de leres

de pintares

de filmares

À força de captares

desenhares

de vestires

despires

À força de embalares

de acordares

À força de abraçares

construíste este meu corpo

que resplandece


11.

Sierpinski (take2)

Espreguiço-me

como uma gata

uma chita

a fêmea do leopardo

Um fogo brando acende-se

na face interna dos joelhos

escorre docemente pelas pernas

até se enovelar nos tornozelos

onde volta a aquecer

Os dedos dos pés

como nas bailarinas

dobram-se


12.

Levo-te pela mão até à cama

deito-te de costas

beijo-te do pescoço

até à púbis

confirmo que estás pronto

debruço-me

de joelhos abertos

puxo-te para mim

e mexo-me

para que entres

até ao fundo


13.

Noite

De noite

ouve-se a água a correr

silvo distante

o bicho de Boris Vian

que vive na canalização

vem de noite aos lavatórios

De noite

ouve-se um som expansivo

desaguar aos ouvidos

e depois refluir

para a profundeza da noite.

De noite

o sangue bate no rochedo do crânio

em golfadas

ao ritmo do coração

Um rio metafórico

corre na noite


14.

Rocegar, rocegante

Encontra-me sempre às cinco da manhã

na verdade entra-me pela cama

enlaça-me

o peito liso dele nas minhas costas

um braço que cerca e me aperta

as mamas

a voz que me sussurra

“com uma só mão seguro as tuas mamas

o que me dá o dobro do tesão”

enquanto o outro braço

como se fosse um espadachim

e o membro o osso o pénis

inquisitivo procuram-me por trás

Encontra-me sempre às cinco da manhã

se dormisse

havia de sonhar com um homem

diferente dele

e se procurasse palavras

que é o que faço às cinco da manhã

seriam as palavras

que ele nunca usou

albornoz rocegar roçada

robusto roca

rocegante


14 bis.

Cevada

por um apêndice intumescido

que me abria as pernas

apressado.


15.

Baseado numa história verdadeira

Na Columbófila de Mafamude

um lugar de virtude

e aborrecimento

(d’habitude)

decorria uma festa

Alertada a polícia

surpreendeu 25 pombos

Nus

(que é como os pombos

estão geralmente

nas festas

onde são surpreendidos)

O avejão

(que tinha feito a denúncia)

saiu à pressa

para não apertar a mão

ao capitão

E gritou aos pombos

que voavam em debandada

— É uma vergonha

a democracia amordaçada!

Passa-se isto em todo o lado

amiúde

e agora também

em Mafamude


16.

Goodreads

Quando estou a ler

o último livro do Javier Marías

distrai-me a querer contar

os 27 pontos que marcou

entre o vértice do meu queixo

e um mamilo

um dos lados de um triângulo que ele

teima em atribuir ao anatomista holandês

Nicolaes Tulp, imortalizado por Rembrandt

O primeiro ponto é o do queixo

e a clavícula está entre o décimo segundo

e o décimo terceiro

É aí que a leitura se torna impossível

e atormenta a minha alma

a dúvida

sobre se o engano a ele ou a Marías


17.

Vi isto num filme argentino

mas passou-se comigo

num bar onde um colega de escritório

passa música às quintas feiras

Sentei-me ao lado dela porque era

o único lugar vago

Ela olhou-me com simpatia

foi buscar uma bebida

Uma amiga passou e disse

Toma cuidado

ela gosta de mulheres

Estávamos a falar há algum tempo

quando percebi

que não conseguia ouvir uma palavra

sequer

e que nem as minhas réplicas fixava

Então ela perguntou se me podia

beijar

Eu não ouvia

Olhei para o cabelo dela pensei

que podia continuar a fingir

que conversava respondi uma coisa parva

como

Podemos roçar

os lábios

E já ela me segurava a cara

com ambas as mãos

As duas mãos dela na minha cara

O DJ parou a música

E era meu colega de escritório


18.

Diz

É de manhã que és alta e tonta

que como uma fenda de luz

se abrem os teus lábios

e desenham para mim

a boca trágica.

Está a cair-me a pele da reclusão

em grandes placas como na psoríase

Serei um ser inteiramente novo

ou uma grande queimada

o que é o mesmo.


SEPARATA OSSO 2 foi impressa em papel a 27 de Fevereiro de 2023, com a colaboração de Alejandra Parr e edição de Carlos Júlio e Luís Lucas Pereira