O rapaz da corneta, 2ª edição
Para os leitores da Osso
No fim, o que perdura, o dry down de Alejandra Parr, é a ideia jubilatória de viver, o corpo dela como um instrumento de cordas que deve ser tocado com rigor e paixão, aquilo a que Melville chamou de espírito oceânico.
(um leitor da 1ª edição)
1.
Acordo logo existo
Tomo posse dos meus sentidos
E em seguida
dis cinestesia
tento eliminá-los
um
a
um
2.
Im propriocepção
Estou imóvel
jacente
o meu corpo pesa
Perco os dedos
as unhas com o teu DNA
os pulsos que algemaste
perco um braço
e o abraço
Os pés enrolam-se nos calcanhares
como peúgas
Sou só duas mamas
que comprei
um dia
Uma vaga impressão no ventre
Umas cuecas húmidas
que de noite afastaste
para uma rapidinha
Sou um prato de spaguetti
no lugar do coração
animando-se como
Ascaris lumbricoides
E em breve nada
Só esta cabeça inquieta
Que com a cabeça posso eu bem
3.
A linha que une os meus mamilos
passa pelo terceiro botão
desapertado
4.
Sierpinski
Uma linha de tensão une
a minha púbis
à ponta dos meus pés
estirados
As pernas
afastam-se
mantendo a tensão
e alargam
lentamente
os ângulos internos
deste triângulo
Alongo-me
isósceles
O meu centro
começa a pulsar
recursivamente
Rolam pequenos triângulos
ao longo das coxas
5.
A linha que une os meus mamilos
começou a girar
devagarinho
6.
Ventre
A primeira vez que ele entrou no meu duche
ajoelhou e com as mãos unidas
afastou-me as pernas
Disse és como a deusa grega
das fontes de Meteora
aqui onde a água desce no teu ventre
Engraçado que nunca me vi assim
uma deusa grega
e embirro com Tetis
a que enfeitiçou o Gama
Ele disse então que o importante na frase
era o meu ventre
E já bebia das águas revolutas
7.
No duche
de joelhos
como o eremita de pedra
de arte sacra
que tenho na cozinha
com as mãos em concha
humildemente
quase sem me tocares
bebes da minha água
escorrente
8.
Foi na guerra Peninsular
Uma companhia de infantaria fez-me cativa
por erro de avaliação
Eu não falava o dialeto deles
as cores da minha roupa confundiram
o sargento-chefe
Esperava-me uma humilhação
O que os brutos fazem às mulheres
cativas
em todas as guerras
e na Peninsular
Estavam cansados do combate
O primeiro a rasgar-me foi
o sargento-chefe
Baixou as calças da farda nº2
(fora uma batalha especial)
e ficou a olhar as montanhas
e depois as mãos sujas de sangue
Chamou o oficial de ligação
e este o responsável de transmissões
e o oficial médico
e o capelão
Todos de calças na mão
à minha frente
pávida cativa
Chamaram então o rapaz da corneta
E ele tocou uma música linda
tão límpida e cristalina
que se ouvia nas linhas inimigas
9.
No princípio da tarde entrei no bosque e detive-me logo na primeira clareira. Sentei-me, primeiro num tronco de árvore recoberto de musgo, depois na terra. Estavam 24 graus e não se via ninguém, de tal forma que ao fim de algum tempo despi-me e apeteceu-me ficar como o personagem de Michel Tournier em Sexta Feira ou os Limbos do Pacífico. Levava o livro de Santa Catarina de Siena, uma curta vida de jejum, ativismo papal, autoflagelação e conversas com Deus.
E deitada no tapete de folhas de carvalho, com as árvores
e o céu como teto, pensei em Caterina de Giacomo di Benincasa, que viria ser conhecida por Santa Catarina de Siena. Pensei nela e no azul violento do céu. Nela e nos moscardos, nos besouros e nas borboletas. Nela e nos carvalhos e nos amieiros. Nas aranhas e nos pequenos insetos alados que pousavam nos meus dedos. Nela e nas felosas ou, mais alto, no milhafre. Perturbada pela claridade, concentrei-me no jejum de Caterina, ordenado por Deus
e num sentido que pudesse dar ao meu próprio jejum, que me deixa tão frágil.
E por mais que os meus olhos se perdessem nas folhas dos carvalhos, nas bolotas, no firmamento, era a metade do rosto de Caterina que os ramos mais altos, refletindo a luz, pareciam desenhar.
10.
O começo do mundo ( work in progress)
(o corpo das mulheres é uma construção laboriosa do desejo dos homens)
À força de pensares
de olhares
de tocares
À força de sentires
de beijares
de lamberes
de chupares
de aspirares
À força de meteres
de tirares
À força de entesares
de molhares
de lavares
de voltares
À força de gemeres
de calares
de falhares
À força de enlaçares
de roçares
de esfregares
À força de cheirares
de suares
de sonhares
de escreveres
de leres
de pintares
de filmares
À força de captares
desenhares
de vestires
despires
À força de embalares
de acordares
À força de abraçares
construíste este meu corpo
que resplandece
11.
Sierpinski (take2)
Espreguiço-me
como uma gata
uma chita
a fêmea do leopardo
Um fogo brando acende-se
na face interna dos joelhos
escorre docemente pelas pernas
até se enovelar nos tornozelos
onde volta a aquecer
Os dedos dos pés
como nas bailarinas
dobram-se
12.
Levo-te pela mão até à cama
deito-te de costas
beijo-te do pescoço
até à púbis
confirmo que estás pronto
debruço-me
de joelhos abertos
puxo-te para mim
e mexo-me
para que entres
até ao fundo
13.
Noite
De noite
ouve-se a água a correr
silvo distante
o bicho de Boris Vian
que vive na canalização
vem de noite aos lavatórios
De noite
ouve-se um som expansivo
desaguar aos ouvidos
e depois refluir
para a profundeza da noite.
De noite
o sangue bate no rochedo do crânio
em golfadas
ao ritmo do coração
Um rio metafórico
corre na noite
14.
Rocegar, rocegante
Encontra-me sempre às cinco da manhã
na verdade entra-me pela cama
enlaça-me
o peito liso dele nas minhas costas
um braço que cerca e me aperta
as mamas
a voz que me sussurra
“com uma só mão seguro as tuas mamas
o que me dá o dobro do tesão”
enquanto o outro braço
como se fosse um espadachim
e o membro o osso o pénis
inquisitivo procuram-me por trás
Encontra-me sempre às cinco da manhã
se dormisse
havia de sonhar com um homem
diferente dele
e se procurasse palavras
que é o que faço às cinco da manhã
seriam as palavras
que ele nunca usou
albornoz rocegar roçada
robusto roca
rocegante
14 bis.
Cevada
por um apêndice intumescido
que me abria as pernas
apressado.
15.
Baseado numa história verdadeira
Na Columbófila de Mafamude
um lugar de virtude
e aborrecimento
(d’habitude)
decorria uma festa
Alertada a polícia
surpreendeu 25 pombos
Nus
(que é como os pombos
estão geralmente
nas festas
onde são surpreendidos)
O avejão
(que tinha feito a denúncia)
saiu à pressa
para não apertar a mão
ao capitão
E gritou aos pombos
que voavam em debandada
— É uma vergonha
a democracia amordaçada!
Passa-se isto em todo o lado
amiúde
e agora também
em Mafamude
16.
Goodreads
Quando estou a ler
o último livro do Javier Marías
distrai-me a querer contar
os 27 pontos que marcou
entre o vértice do meu queixo
e um mamilo
um dos lados de um triângulo que ele
teima em atribuir ao anatomista holandês
Nicolaes Tulp, imortalizado por Rembrandt
O primeiro ponto é o do queixo
e a clavícula está entre o décimo segundo
e o décimo terceiro
É aí que a leitura se torna impossível
e atormenta a minha alma
a dúvida
sobre se o engano a ele ou a Marías
17.
Vi isto num filme argentino
mas passou-se comigo
num bar onde um colega de escritório
passa música às quintas feiras
Sentei-me ao lado dela porque era
o único lugar vago
Ela olhou-me com simpatia
foi buscar uma bebida
Uma amiga passou e disse
Toma cuidado
ela gosta de mulheres
Estávamos a falar há algum tempo
quando percebi
que não conseguia ouvir uma palavra
sequer
e que nem as minhas réplicas fixava
Então ela perguntou se me podia
beijar
Eu não ouvia
Olhei para o cabelo dela pensei
que podia continuar a fingir
que conversava respondi uma coisa parva
como
Podemos roçar
os lábios
E já ela me segurava a cara
com ambas as mãos
As duas mãos dela na minha cara
O DJ parou a música
E era meu colega de escritório
18.
Diz
É de manhã que és alta e tonta
que como uma fenda de luz
se abrem os teus lábios
e desenham para mim
a boca trágica.
Está a cair-me a pele da reclusão
em grandes placas como na psoríase
Serei um ser inteiramente novo
ou uma grande queimada
o que é o mesmo.
SEPARATA OSSO 2 foi impressa em papel a 27 de Fevereiro de 2023, com a colaboração de Alejandra Parr e edição de Carlos Júlio e Luís Lucas Pereira