Penso muitas vezes em rios, mas passo dias sem ver nenhum – nem o Douro, que corre (ou, aproximando-se quase desfalecido da foz, se deixa ficar parado) a 500 metros de minha casa. Não conta eu poder ver a ponte da Arrábida da janela do gabinete: a ponte não existiria sem rio, mas uma ponte não é um rio, e o rio existiria sem ponte. Movido pela obsessão amorosa, navego no Google Earth e desenho, a traço azul (convenção infantil, porque os rios são verdes), o percurso de um desses afluentes de segunda ordem desde a nascente, sempre difusa, até ao ponto onde confia as suas águas a um rio de mais grosso caudal. É em Trás-os-Montes que mais me detenho nestas viagens virtuais: montes e vales sucedem-se ininterruptos até que o planalto de Miranda põe termo aos folguedos. Em cada vale corre o inevitável rio, os vales estreitos e declivosos convergem em vales mais profundos, e todos os rios têm no Douro a sua consumação. Não é apenas para lhes admirar as curvas caprichosas que desenho os rios no ecrã: estudo acessos para saber como visitá-los – como é normal num apaixonado, anseio vê-los de perto. Não espero reciprocidade de afectos. O abraço da nossa espécie tende a ser sufocante e muitas vezes letal para os rios e para a vida que neles se desenvolve, e é natural que rios, plantas e animais usem as defesas ao seu alcance. Mesmo aquelas criaturas que achamos adoráveis, como as lontras e os guarda-rios, não nos querem por perto e esquivam-se à nossa aproximação. Somos atacados por carraças e por nuvens esvoaçantes de insectos. Os velhos caminhos, abandonados em favor da locomoção automóvel, enchem-se de tojos, giestas e silvas a ponto de ficarem impraticáveis. Quando, apesar dos obstáculos, conseguimos chegar àqueles lugares que já ninguém visita, e onde outrora terão até funcionado azenhas, nova revelação nos atinge: também as plantas andam a fugir de nós. Há espécies sensíveis que só em lugares livres de perturbações conseguem desenvolver-se. Mesmo que tentemos minimizar o pisoteio e outras marcas da nossa presença, a nossa visita não é inócua. Se a repetíssemos com regularidade, o nosso objecto de desejo transformar-se-ia gradualmente em coisa contaminada.
Uma aldeia não está completa sem rio; contudo, o rio de bom grado prescindiria da aldeia ou, com mais forte razão, da cidade. O rio da aldeia é obviamente mais belo que o Tejo, mas ainda mais belo que o rio da aldeia é o rio sem aldeia. Ou talvez “belo” não seja o adjectivo certo, por reduzir o mundo natural a uma escala humana de valores. Os lameiros em socalcos a enquadrar um rio, carvalhos e freixos sombreando caminhos entre muros de pedra solta, as casas em anfiteatro feitas do mesmo granito que aflora nos montes: é justo proclamar que tal paisagem é bela. Porém, para termos um vislumbre mais exacto do que é um rio, temos de nos afastar da aldeia e aceder àqueles lugares esconsos onde a orografia acidentada refreou a intervenção humana. E depois devemos abster-nos de aquilatar o que vemos com o olhar humanamente enviesado com que julgamos uma pintura, uma obra de arquitectura, uma praça monumental, uma escultura. A natureza não é um espelho para a nossa vaidade.
Às vezes imagino esta brincadeira: largar um barquito de cortiça em algum pequeno rio transmontano, calcular a velocidade média a que ele seguiria rio abaixo, e ir esperá-lo à foz do Douro quando fosse previsível a sua chegada. Teria, é claro, de me armar de binóculos de longo alcance e de infinita paciência. Mas o que torna a brincadeira dolorosamente inviável é que o barquito nunca chegaria ao mar, por ser travado logo na primeira das quatro ou cinco barragens que teria de ultrapassar para completar o percurso. Desde a segunda metade do século XX, o Douro converteu-se numa sucessão de albufeiras. O escritor duriense João de Araújo Correia escreveu em 1973 no prefácio ao seu livro de contos Rio Morto: “Quero referir-me a um rio arcaico, milenário, que me contava uma história, cheia de pavores e doçuras, quando me via sentado, num banco de pinho, ao fundo do meu quintal. Esse rio morreu. Deixou de ser rio para ser um lago artificial imenso, parado ou pasmado a meus pés, como cadáver que a morte dilatasse.” Um ano mais velho do que o século, João de Araújo Correia não era ambientalista, conceito inexistente no Portugal de então; mas, enquanto os seus contemporâneos celebravam sem rebuço a “vitória humana sobre as forças da natureza”, ele viu, sofreu e deu testemunho de uma perda irreparável. E no século XXI, em que os estragos colossais causados pelas barragens são bem conhecidos, o mesmo progressismo cego continua, em Portugal, a matar rios: Tua, Sabor e Tâmega foram os rios agora sacrificados. Por vontade do governo português, o rio Olo, afluente do Tâmega e ex-líbris do Parque Natural do Alvão, teria sido destruído com duas barragens, mas o nefando projecto não se concretizou. E é visitando o Olo, e outros afluentes de afluentes do Douro, que hoje em Trás-os-Montes podemos ainda, com humildade, aprender o que é um rio vivo.