Tinha finalmente chegado o livro, em correio registado entregue em mãos pelo carteiro. Abriu o envelope de cartão sem história nem ornatos, tirou de lá o livro, segurando-o à altura dos olhos. Origâmi para dois: comunicação de massas no ocaso da humanidade, o último da jornalista-ativista Rebekka Kylling. Como era próprio de uma alma antiga, a chegada de um livro era uma ocasião memorável e um pretexto para alterar a rotina. Naquele dia, resolveu faltar ao trabalho. Telefonou a dizer que estava com disenteria, provavelmente causada pela ingestão dos gafanhotos confitados que provara na mostra de comida do futuro que a própria Instituição havia promovido, garantindo que tentaria trabalhar de casa. Na verdade, enviaria apenas umas coisas previamente feitas e reservadas, uns dias antes, já a contar com aquela oportunidade. Pousou o livro na mesinha de centro e foi encher a banheira com água bem quente e sais de banho dos Himalaias.
Regressou à sala seminu, observou a chuva grossa e melancólica que caía lá fora e pegou no livro. Apreciou o minimalismo da capa, avaliou a expressão da autora na fotografia de badana, folheou-o sem compromisso, esse reservado para quando a temperatura da água do banho tivesse baixado o suficiente para não o cozer. Mas estacou logo ao ler a primeira frase da nota introdutória: “Com o surgimento da realidade aumentada (…)”. As cores abandonaram-lhe o rosto e sentiu um aperto no peito. “Surgimento”? Como era possível? Como podia alguém com os pergaminhos de Rebekka Kylling referir-se às tecnologias da informação daquela forma, como se de uma irrupção se tratasse, negando o caráter construído no jogo de práticas socialmente determinadas daquele — ou de qualquer outro — desenvolvimento, de toda a técnica? Aquela escolha de palavras evidenciava uma visão simplista e perigosamente anistórica dos processos que, o mais das vezes, andava de mãos dadas com a naturalização de uma ordem social na qual a concentração de poder nas mãos de grupos à margem do controlo democrático é apresentada de forma pretensamente apolítica. Não poderia uma obra escrita naqueles termos constituir um exercício de denúncia equivalente ao livro anterior da autora, Ursa maior, em que esta desossara com astúcia e erudição as ligações entre a indústria dos ultracongelados e a máfia do frango dinamarquesa.
Sentiu uma vertigem, as pernas fraquejaram, o livro libertou-se das suas mãos e caiu nos tacos de carvalho francês com o estrondo de trezentas páginas numa gramagem fora de moda. Começou por atribuir aquele quase delíquio a uma quebra de tensão. Encostou uma mão à parede e foi arrastando os pés em direção à casa de banho. O aperto no peito piorava, bem como a fraqueza nas pernas, que já mal o sustinham em pé, começava a sentir dificuldade em respirar. Deu um encontrão na porta, apoiou os antebraços no lavatório e olhou-se ao espelho. O terror invadiu-o de imediato, não tanto pelo ar cadavérico que adquirira no período de um ou dois minutos, mas pelas pintas multicolores que lhe cobriam o corpo. Não havia margem para dúvidas: era um caso de intoxicação intelectual aguda.
Ele sabia que o tempo escasseava, os sintomas iriam agravar-se, o fim em agonia sobreviria num ápice, como vira acontecer a tantos membros do clube de leitura a que pertencera uns anos antes, quando a juventude lhe incendiava o sangue e ler literatura não certificada sozinho, com os riscos que lhe estavam associados, era enfrentado com o orgulho de um ritual iniciático. Sabia que era preciso agir, mas como? Nesse momento, os braços deixaram de conseguir sustentar o seu peso e o seu corpo caiu nos ladrilhos como um naco de carne numa banca de talhante. A única hipótese que tinha era rastejar pelo corredor, chegar à porta do apartamento e arranjar forças para a abrir, na esperança de que algum vizinho o visse a tempo de ainda lhe prestar socorro. O dispositivo, que tinha deixado na sala, estava demasiado longe para ser uma opção. Começou a
arrastar-se pelo corredor, mas a fraqueza e os espasmos que começavam a instalar-se negavam-lhe progressos significativos. O filme da sua vida começou a passar-lhe pelos olhos. O conforto uterino, o primeiro beijo, o sabor da água contida numa ânfora de barro, o som das gaivotas no calor da praia. E, de súbito, a campainha toca. Delírio ou realidade? Rebola os olhos, parece-lhe ver a luz das escadas do prédio a passar por baixo da porta, tenta medir com a visão brumosa a distância a percorrer e conclui que não conseguirá lá chegar. A campainha tocou novamente. Deviam ser os vendedores de eletricidade, como de costume, mas, pela primeira vez na vida, qualquer pessoa servia perfeitamente. Abriu a boca e gritou ou quis gritar. Ouviu o som da sua própria voz sem saber se era um facto ou uma alucinação induzida pela deficiente oxigenação do cérebro. E nessa dúvida impossível de eliminar pensou encontrar um alívio mensurável da sintomatologia, imaginou uma penúltima esperança.