Número 30

25 de Março de 2023

O DESPLANTE

O sol atrás da figueira

FREDERICO MARTINHO

Ao meu avô,


Recordo-me, vaga e repetidamente, daquele momento no terraço, do sol atrás da figueira, talvez no final de um verão, em que socavava a terra, e eu olhava para ele, admirado com a forma como tratava as raízes, na horta, no jardim, na casa, das madrugadas dos domingos de pesca, quando saíamos e regressávamos de noite, do infinito do dia, da paciência com que encarávamos o rio, tão lento quanto a infância o consegue ser, tão imprescrutável quanto um sono visto de fora. Saíamos sempre às horas certas, que acomodava no seu relógio de pulso como um mantimento indispensável. Sempre a compasso, qual batuta de uma natureza inesgotável, assegurava que o vento não balançava as frágeis criaturas ribeirinhas: as finas canas, os guarda-rios, os guarda-sóis, eu. Nunca foi de movimentos bruscos, mais típicos de repentes bravios, ervas do monte, criaturas reservadas à literatura. A velocidade era a da resina que brota dos pinheiros, a prova de que há um tipo de sangue para todos os seres, um fluxo dentro das coisas vivas, sempre pronto a vazar de cada ferida, a maneira de sabermos das brechas com que vão sendo feitas as superfícies das coisas. A seiva, que adorna o ar doce, nas incursões pela floresta / o licor, que entorna a essência do fruto na eternidade do álcool / lançando a primavera inverno adentro / o sangue / conforme corre / quente / em nós / perfume de ferro / enrijece quando some. Prossegue em prosa, essa memória em exercício, que perdia para o tempo, e que encontrava nos bilhetes escritos à mão, numa caligrafia oficial, um aliado poético para as trivialidades que nos consomem. Os apontamentos, os códigos, as agendas, os valores, tudo espalhado pela casa, como as fotografias, para serem encontrados sem querer, como as fotografias, para um dia fazerem sentido à patrulha dos olhos, como as fotografias. Confiando nos números e em notas curtas, aparelhava o contínuo dos dias numa missão de certezas, esculpindo sem pedra, um padrão de pundonor. Homem do seu copo de vinho, nunca deixou que lhe tirassem a acidez das colheitas-oferendas. Converteu-se no lampanário dos seus próprios silêncios, lançando ele mesmo a ponte nos seus abismos secretos. Fez-se crente dos céus / anuindo chuvas indevidas / que o encharcassem / no último dilúvio / levando com ele / a triste borrasca / e não a água / que não bebia. Gota a gota, evaporou-se, sereno como o fim de um rio, da luta com nome de luto, e para quem lhe aurou um amor de pai, uma nova nuvem regará as macieiras e o azevinho. Se o mundo parou naquele momento foi apenas por um inédito desrespeito pelas horas. Ele, que voltava ao relógio de pêndulo, rodando as engrenagens, para que a gravidade voltasse, seriamente, toque a toque, segundo a segundo, ao conveniente controlo do tempo, compassado. E agora, que o seu corpo já não existe como lugar, nem sequer um princípio de sonho que, tocando-me no ombro, me explicasse porque duram tanto as viagens e tão pouco os destinos, resta pegar em todas as imagens e reconstruir aquela tarde onde no terraço, com o sol atrás da figueira, a socavar a terra, disse: um dia, quando eu morrer, serás tu a cuidar do jardim. Depois, contavam os adultos, rindo, a cada almoço de família, que da candura de criança me saiu, receoso perante hercúleo serviço, e ainda falta muito?  Passou num instante, a infância acabou.