Número 22

28 de Maio de 2022

O DESPLANTE

O sufoco

FREDERICO MARTINHO

Pouco importa o que eu pense ou faça, a minha consciência desse facto apenas se intensifica cada vez mais, e um dia será tão grande que isso, a consciência disso, vai-me matar.*

Parto para esta nova sequência embuído de uma consciência letárgica. Duvidando do rigor desta concepção, já que a letargia implica, segundo as várias definições, um estado de inconsciência, arrisco prosseguir na possibilidade do erro, ou não fosse esse o critério assumido aquando da apresentação desta revista. Não é que alguma vez estivesse interessado na cronologia (que é a base especulativa da necrologia, e eu gosto de textos imortais) durante a feitura dos textos anteriores. Se tivesse que vincar uma posição sobre o encadeamento, excluiría, sem qualquer sombra de dúvida, a sua lógica sucessiva. Contudo, e não sem um certo desconforto, terei que voltar ao último número, ao momento em que rebentou outra guerra.

A apatia que se apoderou de mim desde então pode ter um ponto de origem que tentarei indentificar. Para começar, a agressividade que invadiu o território das ideias, misturando o que parte da moral, o que urge da empatia e o que se precipita do instinto. As trincheiras encheram-se de soldados da paz, que se elevam sem dar conta de serem mais carrascos do que libertadores, quando, ao negar a complexidade do mundo, apenas contribuem para fazer dele uma coisa pobre, sem sombras, sem cavidades. Querem um mundo liso, onde deslizar a preguiça e a jacobice, habituados à publicidade e aos telejornais, onde tudo é tão confortável e feito à nossa medida. Sem querer falar da Guerra em causa, que iria poluir irremediavelmente este momento, evoco-a apenas para desimpedir o caminho que tem atravancado a soltura plena das palavras – um sufoco.

Depois, um intervalo no mundo a interromper o andamento furioso que alimentava a escrita pela dor, como uma mão que desce para nos medir a pulsação e percebe que o coração não parou. Nessa viagem deparei-me com uma sensação antiga de estar afastado das certezas do mundo. O poder de uma viagem é o de nos alterar as palpitações cardíacas, de nos retirar das horas certas, e, sobretudo, de nos mostrar como são extensas e diversas as texturas na superfície da Terra. Chegado da viagem, confrontei-me com um velho desencanto, por vezes exagerado e indevido, que Thomas Bernhard descreveu bem nas suas memórias: Mesmo que hoje caminhe pela cidade  pensando que ela não tem nada a ver comigo, porque não quero ter nada a ver com ela, tudo o que trago dentro de mim provém dela, de tal modo que eu e a cidade temos uma relação eterna, indissolúvel, ainda que horrorosa.*

Não posso dizer, como Thomas Bernhard, que odeio o mundo a que pertenço. Não tendo crescido na loucura do nacional-socialismo entre terras alemãs e austríacas, mas numa imberbe social-democracia ainda enfeitada pelo enxoval de uma entrada na Europa, tornei-me adulto sem dores, obrigando-me a simular tudo o que não sofri nos livros, na música, na sensibilidade dos outros. Habituei-me, sem dar por ela, a imaginar o Sofrimento. Assim, a raiz da apatia poderá muito bem ser o excesso, a simulação, a injustiça de ter o Sol a brilhar sobre mim. De todas as cidades do mundo, vivo na mais acomodada, a cidade mais estagnada do país mais irrelevante, onde o frio nunca é suficiente para queimar a face e o calor não chega para enlouquecer. Uma cidade que gosta de cantar a tradição, mas que se tornou na mais moderna vulgaridade achando suficiente ser uma banca de vender cursos para a História. Talvez por estarmos há tanto tempo encostados a um canto, ouvindo as tragédias e maravilhas de alhures, amontoando as tralhas e o pó das ideias velhas e ultrapassadas, tornámo-nos meros acumuladores de dados adquiridos. Por isso, sinto que este tempo em que escrevo é um tempo de excesso. Não de desejos ou sonhos, mas de bibelôs, de húbris e de gordura.  Quando Bernhard denuncia a dureza da infância e descreve a forma como o seu avô (o seu herói) falava do suicídio como única salvação, denuncia-a dentro de um cenário de excesso que viria a ser exposto com a destruição da cidade. Tudo agora era apenas e tão-somente «escassez».* Ele, que não acreditava nos destinos da sociedade, acabando por viver os bombardeamentos em lugares debaixo da terra, encontrou o o ânimo ausente de uma vida no fulgor da destruição total: nem antes nem depois, consegui amar de facto a minha cidade natal, e amei-a de todo o coração. Naquele momento de necessidade suprema, a cidade era de súbito o que nunca tinha sido, uma natureza viva, ainda que desesperada, um organismo urbano; o museu defunto e mentiroso da beleza que ela sempre fora até aquele instante de máximo desespero enchera-se de humanidade.*

Há poucas coisas mais perversas do que encontrar deleite na desgraça e essa é uma grande crueldade da Guerra. Fecha-nos no segredo da traição mais íntima: eu, comigo. Os olhos excitam-se com o florir de uma explosão. A vergonha desponta ao contemplar a beleza das lágrimas soluçantes de uma mulher enquanto as partes mais profundas da alma cobiçam o silêncio triste de um edifício queimado. Bernhard pôde escrever aquilo, porque foi vítima. Eu, que vivo numa bela cidade por destruir, prolongo mais um dia em culpa por não ter o direito de sofrer e de pensar ao mesmo tempo.

*Thomas Bernhard, Origem