Número 10

7 de Agosto de 2021

O DESPLANTE

O Verão

FREDERICO MARTINHO

O mais irrecuperável da vida são os hiatos
Que nos preenchem
Misteriosos intervalos
Entre estádios de interpretação
*

O mais irrecuperável da vida são os hiatos. Esse elemento ‘que nos falta’, uma lacuna. Um momento que surge como ausência e por isso inalcançável. Silêncios. Rasgos do ‘ser-aí’, a consciência em vertigem, que nos constrói uma comoção ou uma maravilha.

Dizia um filósofo das imagens que o que se passa de uma geração à outra são os silêncios, como das Guerras restam senão os traumas silenciosos. O momento em que o mistério se impõe ao dizível e o silêncio suporta a intensidade do que se diz. Carências da linguagem que revelam o edifício inacabado da compreensão e a vastidão do entre nas ideias. São esses instantes que por um lado desaparecem com todos os discursos e por outro se perpetuam em blocos de ocultação, pautando o instintivo devir com a consciência poética – viveríamos como os cães, se de tais misteriosos intervalos fôssemos alheios.

Resta-nos devolver ao mundo aquilo que a linguagem não é capaz: os hiatos, as imagens. Os hiatos são esse momento em que a interpretação é ferida; as imagens o momento em que a ferida é forma. Nas paredes penduram-se as pinturas e as fotografias, nos livros escrevem-se as palavras, mas é nos intervalos misteriosos das fendas do dizível que as imagens surgem e se cristalizam em fuga.

*Coimbra, 2015, a partir de um excerto do poema naguère (les concierges) de Rosa Oliveira.