Número 42

10 de Agosto de 2024

ESTÓRIAS DE FAMÍLIA

Olhos que, depois de cegos, continuaram a ver

MARTHA MENDES

A Avó Maria era a filha mais velha de um casamento que durou a vida inteira, com homem e mulher separados por um oceano. O bisavô José Henriques já estava emigrado nos Estados Unidos da América quando a conheceu. Ela era irmã de uma cunhada, mulher de um dos irmãos, e ele conheceu-a na primeira vez que veio a casa. Casaram-se e ele voltou a atravessar o mundo, deixando-a com a minha Avó na barriga e o peso de ser viúva de um homem vivo. A história repetiu-se duas vezes: três vezes ele tornou a casa e partiu, deixando-lhe um filho no ventre. Assim nasceram, depois da Maria de Lourdes, o Rodrigo e o Zé. Quando a minha Avó tinha 15 ou 16 anos, ele mandou a carta de chamada à família, mas a Avó Maria já tinha conhecido o Avó Inácio e não quis ir. O Avô Inácio costumava dizer que se apaixonou pelos olhos da minha Avó, que ele jurava que eram os mais bonitos do mundo. Toda a gente que o conheceu o ouviu dizer, pelo menos uma vez, que a mulher dele tinha os olhos mais bonitos do mundo. E a minha bisavó, para não contrariar um amor assim – e para não deixar a menina sozinha, num tempo em que as más-línguas chicoteavam mais do que as saudades – ficou em Portugal com a filha e mandou os dois rapazes ter com o Pai. Depois disso, o meu bisavô só voltaria a Portugal no regresso definitivo: o último adeus durou vinte longos anos.

O Bisavô José emigrou para a América com um dos irmãos, de cabeça ao fundo, como então se dizia, porque os emigrantes sem papéis eram transportados no porão do navio, e faziam a longa viagem com a cabeça – e o resto – no fundo do barco, entre as malas e as mercadorias. O irmão, mais precavido, com medo do desconhecido, negociou ida e volta, mas ele não. Lá chegados, apanharam os Estados Unidos em plena Grande Depressão e rapidamente o sonho americano foi substituído pela realidade de um país fortemente marcado pela maior crise financeira da sua história, o desemprego e a pobreza. O irmão regressou e casou com a mulher que acabaria por apresentar ao meu Bisavô a futura mulher dele, irmã dela. O bisavô José, sem dinheiro para o regresso, não teve alternativa senão ficar e fazer o melhor que pode. Depois de um longo período de provações, a sorte virou e ele acabou por encontrar o que o sonho americano lhe tinha prometido. No primeiro regresso a Portugal, conheceu a irmã da cunhada. É aí que começa a história da minha Avó.

A Avó Maria – a quem sempre chamámos Avó Carôla, porque é por esse nome que as mulheres da minha família são conhecidas na Murtosa: As Carôlas – recusou-se a deixar Portugal por amor, mas esse amor acabou por levá-la a fazer exatamente o mesmo caminho, uns anos mais tarde, já casada e com filhos. Ela acabaria por ir atrás do marido que, como o sogro, atravessou o mundo à procura de um destino diferente do que estava reservado a um pescador no Portugal pobre e cinzento daquele tempo. Esse amor acabaria por levá-la até New Bedford, cidade costeira da Nova Inglaterra, uma espécie de Little Portugal, onde ela viveu mais de três décadas sem nunca aprender a falar Inglês, porque nunca precisou: o Português era a língua mais usada na cidade. Os vizinhos eram portugueses; o padeiro, a cabeleireira e o canalizador também. A Maria, que não sabia falar inglês e tinha a quarta classe – um privilégio raro, na altura, que só esteve ao alcance dela por ser a filha mais velha de um emigrante endinheirado – assinava o jornal americano e lia-o, religiosamente, todos os dias. Muitas vezes, quando a minha Mãe ou os meus tios chegavam do Liceu ela pedia-lhes para lerem o jornal e confirmarem se o que ela tinha entendido estava correto. Eles contam que ela nunca se enganava: com mais ou menos detalhe, ela tinha lido e percebido o que lá dizia, mesmo sem conhecer a Língua que trazia as notícias.

A Avó Carôla – que também é minha madrinha – era conhecida pelo génio e pelo dom para a cozinha. Tinha o feitio mais torto, mas a mão mais certeira para fazer arroz. Fazia o melhor arroz do mundo. Deu a receita a toda a gente, toda a gente a replica, mas ninguém consegue fazer o arroz dela. Sempre que nos reunimos à mesa, no Natal, na Páscoa, não há uma única vez em que alguém se esqueça de o dizer: e o arroz da Avó? Era um milagre, aquele arroz. Do feitio só sei o que ouvi contar, porque como Avó ela amoleceu – e esmerou-se: era a Avó clássica, dos livros, que fazia tudo o que podia para estragar os netos com mimo, amor e pão-de-ló e, creio, compensar através deles alguma dureza que teve com os filhos.

A minha Avó morreu cega. Os diabetes acabaram por cegá-la e ela viveu mais de dez anos sem ver absolutamente nada. Um dia, os olhos mais bonitos do mundo deixaram de ver. Ter perdido a visão foi o seu maior desgosto e uma tristeza que nunca superou, mas não foi o suficiente para lhe mudar o génio. A Maria Carôla continuou sempre altiva e dona de si, até ao último momento, e nunca permitiu que as suas limitações lhe afetassem o temperamento. Foi cheia de fibra até ao fim e mesmo quando as fibras do corpo começaram a enfraquecer, as da alma nunca cederam. Lembro-me de ela, já com a visão muito afetada, nos levar para a cozinha para a ajudarmos a fazer o seu famoso pão-de-ló e o seu inigualável arroz. Estava cega, mas recusava-se a deixar de ver. Lembro-me dela na cozinha, a dar ordens: traz o arroz, mexe até eu dizer para parares. Agora, baixa o lume. Cozinhava através de nós e a mão, tal como a têmpera, nunca lhe falhou. Na verdade, nunca nada lhe falhou, nem os olhos, que eram os mais bonitos do mundo, dizia o meu Avô e era verdade. Olhos que lhe permitiram ler numa Língua que ela desconhecia e que, depois de cegos, continuaram a ver.