Número 38

2 de Março de 2024

EXCURSÕES

Os fetos-reais da Casa Tait

PAULO VENTURA ARAÚJO

Antes de o nosso planeta se cobrir de árvores, eram os fetos-arbóreos e as cicadáceas que compunham as florestas primevas. Quanto mais os fetos-arbóreos cresciam em altura, mais os dinossauros alongavam o pescoço para lhes poderem comer a folhagem tenra. Os dinossauros desapareceram da face da Terra, ou minguaram até se transfomarem em inocentes aves, mas os fetos-arbóreos, ainda que perdendo a primazia no reino vegetal, deixaram descendentes de porte respeitável que persistem até à nossa era. Existem nas regiões tropicais e sub-tropicais, e ainda na Austrália, na Nova Zelândia e em diversas ilhas do Pacífico. Na Europa, contudo, não ocorrem espécies nativas e só há fetos-arbóreos em cultivo, a maioria deles exigindo estufa para sobreviver ao frio. A australiana Dicksonia antarctica, que povoa o afamado vale dos fetos no Buçaco, escapa a essa regra por ser originária de latitudes amenas.

Os troncos dos fetos-arbóreos nada têm de lenhoso. São de facto rizomas, entrelaçados fibrosos de caules e restos de folhas velhas, que adoptaram o modo vertical de crescimento e só no ápice fazem brotar folhas novas. Há fetos que, não sendo propriamente arbóreos, com a idade acumulam à superfície do solo um volumoso rizoma ao estilo de um tronco incipiente. Se os aceitarmos como fetos-arbóreos honorários, desses já temos alguns na Europa. Um exemplo é o feto-real (Osmunda regalis), abundante em rios e ribeiros do norte e centro de Portugal, e comum nos bosques húmidos e em margens de lagoas nos Açores. A sua vocação para quase-arbóreo só é patente em exemplares muito idosos, raros de encontrar no continente mas existentes em grande número em algumas lagoas de São Miguel. Um par desses vetustos fetos-reais vive, surpreendentemente, no jardim da Casa Tait, situado na encosta oriental do vale de Massarelos, no Porto. Claro que se trata de exemplares cultivados, pois há séculos que no centro da cidade não subsistem condições para esses fetos medrarem espontaneamente. Por que se terá alguém lembrado, há 130 anos ou mais, de acrescentar uma planta tão vulgar na natureza a um jardim recheado de raridades exóticas?

Em Inglaterra, a partir de meados do século XIX e persistindo por três ou quatro décadas, viveu-se entre as classes possidentes uma verdadeira pteridomania – uma vontade incontrolável de coleccionar fetos e dispô-los em arranjos ornamentais tanto em jardins como em estufas, e até em salões e outros aposentos domésticos. Numerosos livros foram publicados descrevendo fetos nativos e exóticos, explicando os cuidados a ter no seu cultivo, e propondo recipientes inovadores para melhor acomodar essas plantas. A pteridomania criou um mercado lucrativo, e houve uma acirrada caça aos fetos para satisfazer a procura. O feto-real, que era dos mais cobiçados por coleccionadores, ficou à beira da extinção em muitos condados ingleses.

Sob forma atenuada e com duas décadas de atraso, a mania dos fetos também chegou a Portugal. Duarte de Oliveira Júnior (1848-1927), redactor entre 1870 e 1888 do Jornal de Horticultura Prática (revista mensal que fomentou com moderado sucesso o gosto pela jardinagem entre a burguesia portuense), publicou em 1876 O Jardim na Sala, livro de 300 páginas em que industria as senhoras (por ser delas o governo do lar) no cultivo de plantas em ambientes fechados. Os fetos têm no livro amplo destaque: escreve o autor que «não há hoje uma só dama que não se extasie diante dos representantes desta família e que não sinta desejos de ter alguns no seu boudoir». A Osmunda regalis, embora mais apropriada para espaços exteriores, é mencionada com apreço; e há gravuras ilustrando uma «suspensão especial para fetos», um «rochedo artificial para fetos», e um «vaso para fetos». Este último, com abertura oblíqua em vez de horizontal, era invenção do naturalista e poeta Augusto Luso (1827-1902), amigo de Júlio Dinis e autor, em 1872-73, de um Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus Arredores. E sabe-se que Júlio Dinis também foi contagiado pela pteridomania: na Madeira, onde procurou em vão curar-se da tuberculose que o vitimaria em 1871, e onde permaneceu entre Outubro de 1869 e Maio de 1870 e por igual período um ano mais tarde, organizou um herbário que é um repositório quase completo da flora pteridófita madeirense – um trabalho primoroso feito por um verdadeiro entendido.

De modo que há um contexto a explicar a presença de dois velhíssimos fetos-reais no jardim da casa onde morou, a partir de 1880, o comerciante e naturalista William C. Tait (1844-1925). Em Portugal, felizmente, o reduzido número de aficionados por fetos (ou, mais geralmente, de interessados em jardinagem) nunca motivou pilhagem semelhante à que aconteceu em Inglaterra. No nosso século XXI, o feto-real continua a sua vida tranquila nos ribeiros que não foram entubados e nos rios que não foram inchados com barragens, resistindo à poluição das águas e ao assédio da vegetação invasora.

Se, na burguesia endinheirada oitocentista, alguns homens tiveram vagar e interesse para se aventurarem em expedições naturalistas por montes e vales de um Portugal quase desconhecido, às senhoras só restava contemplar a natureza domesticada em jardins. Para quem vivia nessa reclusão dourada, durante quantos anos terão estes fetos-reais da Casa Tait anunciado, com o desenrolar paciente das novas frondes, o início de mais uma Primavera?


Feto-real da Casa Tait no Inverno



Fetos-reais na Lagoa de São Brás (São Miguel, Açores)