“Eu estive na Croácia, destacado na guerra da resistência. Eu não gostaria de perder nenhuma destas experiências. É bom saber como nos comportamos perante o perigo, quando as balas assobiam – é um lugar onde somos testados.” Quem profere estas palavras é Hans Asperger, psiquiatra que ficará para a história pela síndrome de Asperger – diagnóstico hoje abandonado e tornado infame. O presente ensaio dedica-se a compreender melhor este homem e o contexto histórico que o gerou, indissociável da concepção de ser humano e da patologização dos desvios à norma. Baseio-me, entre outras referências, no livro de Edith Sheffer Asperger’s children – the origins of autism in Nazi Vienna, lançado no primeiro de Maio em 2018. A autora dedica-o ao seu filho autista, e abre a caixa de Pandora sobre uma personalidade considerada o “Schindler” das crianças neurodivergentes, capaz de embelezar os diagnósticos para as salvar da morte certa que tinha lugar em Spiegelgrund, uma clínica de eutanásia onde as consideradas “vida indigna de vida” eram submetidas a uma morte lenta, ou melhor dizendo, uma morte cuja velocidade era ajustada para passar como natural e evitar demasiada comoção nos pais e familiares. A eutanásia de crianças deficientes ou desajustadas nunca foi publicamente assumida pelo Reich mas era do conhecimento da sociedade austríaca, que décadas depois do encerramento da clínica ainda assustava as crianças malcomportadas como se do bicho-papão se tratasse. A história inicia-se na Viena Vermelha, a capital da Áustria ocupada pelos socialistas entre 1918 e 1934. Os problemas do proletariado após a primeira guerra mundial são enormes e centram-se no destino triste da prole de mulheres esgotadas, crianças depauperadas repletas de traumas e enfermidades alimentadas pela desnutrição, raquitismo, e doenças resultantes de fracas condições de vida. Os socialistas abrem caminho para uma recuperação da sociedade centrada nas crianças, e os médicos tornam-se no seu baluarte. A psiquiatria e a psicanálise são centrais no processo e pessoas como Sigmund Freud circulam pelas ruas da cidade antes da ocupação Nazi. Criam-se diversas instituições para o efeito, entre as quais a Clínica de Educação Curativa do Hospital Pediátrico de Viena, dedicada à recuperação de crianças inadaptadas. O processo de recuperação é “mais uma arte do que uma ciência” e assenta no estabelecimento de rotinas para as crianças poderem estar como em liberdade, tendo um programa preenchido com aprendizagens durante a manhã com a tarde livre para brincar, e onde um corpo clínico observa as crianças para responder às suas necessidades de desenvolvimento. O que os socialistas conseguiram em Viena é lendário e ficará para a história como um dos períodos de maior florescimento, apesar de relativamente curto – dezasseis anos. Resolveu-se a crise de habitação e implementaram-se avanços inegáveis no domínio da saúde e educação. No entanto, mesmo antes da chegada do Nazismo, Viena tinha colapsado sob o jugo dos católicos conservadores conhecidos como “os pretos” que segundo John Gunther eram invejosos da cidade próspera e dominavam os meios intelectuais e académicos na altura. Hans Asperger era um dos “pretos” e continuará católico quando tal não lhe traz nenhuma vantagem aparente, sendo um dos poucos do seu círculo que não se junta ao Partido Nazi. Asperger beneficia enormemente da emigração forçada dos profissionais judeus que liberta caminho para a sua carreira. Será uma das pessoas de confiança na implementação das políticas de racialização biológica do novo regime. O terceiro Reich pretende, nas palavras de Rudolf Hess, ser “biologia aplicada” garantindo a supremacia dos mais fortes através do aperfeiçoamento contínuo e da eliminação dos que são considerados geneticamente inferiores. A medicina aceita escolher os “melhores” criando critérios cada vez mais afunilados para o Volk – o povo germânico. Corpo e mente são vistos de uma forma indissociável tanto na saúde como na doença, as duas faces de Janus que traçarão o destino das crianças na Áustria, Alemanha e no resto do mundo. Para pertencer ao Volk é essencial ter-se Gemüt, uma palavra de difícil tradução que pode significar alma e sentimento coletivo. O Nazismo alimenta o Gemüt de todas as formas possíveis através da Juventude hitleriana, da Liga de raparigas alemãs e das constantes atividades de grupo que se deveriam sobrepor aos laços familiares para maior coesão social. Asperger é ele próprio expressão desta forma de socialização, exaltando os seus tempos no movimento da juventude alemã, as longas caminhadas ao ar livre e a camaradagem do grupo. Na sua prática clínica via-se como um “cuidador de almas” e buscava conhecer as crianças intimamente, para saber até que ponto eram recuperáveis – capazes de serem assimiladas pelo Volk. Para alcançar tal empresa, Asperger confia mais na intuição do que na ciência. Deixa-se guiar pela empatia, amparado e protegido por Franz Hamburger que promoveu ativamente a desprofissionalização da Clínica de Educação Curativa após o suicídio de Clemens von Pirchet, seleccionando aliados do regime. As crianças irrecuperáveis são enviadas para casas de correção, reformatórios ou para Spiegelgrund, onde serão expostas a inúmeros abusos antes de ingressarem no programa de morte que consistia na administração de barbitúricos, subnutrição e frio até perecerem de tuberculose e pneumonia. As crianças podiam ser declaradas irrecuperáveis por múltiplos critérios assentes, em último caso, em meras decisões pessoais. A observação de proximidade era contínua e incluía aspectos físicos, mentais, emocionais e sociais. As primeiras a ser eliminadas foram as portadoras de lábio leporino e com enurese, evidenciando a importância de um conceito estético essencial ao Volk, assim como os cuidados que impõem sobre os demais, vistos como um fardo. Os critérios decisivos assentavam na capacidade de poderem vir a estudar ou trabalhar, aferidas desde cedo. Algumas eram uma ameaça ao Volk e alvo de medidas preventivas de criminalidade. Quem possuía maus genes devia abster-se de procriar. Os que não se abstinham voluntariamente eram alvo de esterilização forçada. As crianças que vinham ao mundo filhas de pais alcoólicos, com características judaicas, dificuldades de aprendizagem ou que fugiam de casa, ingressavam nestas instituições. Além da morte, em que consistiam os tratamentos? Eram vários, mas tinham como propósito alcançar a única cura possível – a conformidade. As expectativas para rapazes e raparigas diferiam substancialmente tendo em vista o cumprimento dos seus papeis sociais – eles corajosos e aventureiros e elas donas de casa competentes. Asperger não suja as mãos durante o Reich com as crianças irrecuperáveis além de assinar os papéis da sua transferência. Considera-se abençoado por nunca ter morto ninguém durante a Guerra e orgulha-se das suas experiências de camaradagem na Croácia enquanto as balas assobiam, num dos cenários mais devastadores e mortíferos da Segunda Guerra Mundial repleto de atrocidades, onde pôs à prova as competências que adquiriu na juventude alemã ao guiar-se por uma bússola na retirada. Enquanto estava no campo de batalha manteve o contacto com Viktorine Zak, a enfermeira-chefe da sua clínica em Viena que seria bombardeada meses mais tarde pelos Aliados, e publicou artigos científicos, incluindo o seu tratado sobre psicopatia autista (1944). Na sua clínica dedicou-se com afinco às crianças que considerou recuperáveis. Entre estas contam-se rapazes bastante singulares que décadas mais tarde seriam diagnosticados com a síndrome pela qual ficou conhecido. Trata-se de rapazes brancos e bonitos de classe alta com inteligência acima da média, filhos de pais com boas profissões que pareciam ter herdado destes apenas as excentricidades. Estas crianças eram imaginativas e faziam um uso criativo da linguagem a partir do seu entendimento do mundo, mas tinham um Gemüt fraco – não se integravam no grupo. Edith Sheffer sugere que Asperger vai refinando as características destas crianças para diagnosticar um “défice de fascismo”, se entendermos por fascio a consolidação do grupo. Apesar de Asperger não ser completamente coerente sobre a natureza da falha destas crianças – se tinham um Gemüt diferente ou ausente – é bastante claro no seu entendimento de que é patológica ao designá-la, já no fim do terceiro Reich, como uma psicopatia, aproximando-as das pessoas “sem compaixão, vergonha ou honra” com sentimentos defeituosos. Asperger é ímpar na proposta de tratamento: é essencial que a falta de Gemüt seja compensada com Gemüt por parte dos cuidadores e educadores, e sem vínculos afetivos o trabalho com estas crianças cai por terra. As propostas de ensino que elabora são consistentes com as recomendadas hoje, contemplando o apoio individual com assistentes pessoais.
A vida e trabalho de Asperger ensina-nos lições difíceis de adquirir de outra forma. Por um lado mostra-nos como é possível “passar do dia 24 para o 26 de Abril”, usando uma expressão de José Manuel Sobral sobre como as pessoas são capazes de transitar entre regimes ditatoriais e democráticos, por não aderirem completamente a nenhum deles. A chave está em manter linguagens e sentidos separados entre o que se profere na vida pública e na vida privada. Asperger mobiliza a sua herança de católico “preto” ancorada nas comunidades rurais para transitar da Viena Vermelha, onde as pessoas com deficiência tinham prioridade na alocação de casas, para o terceiro Reich, onde são eliminadas. E fá-lo mantendo um papel preponderante nas instituições enquanto o seu propósito é pervertido. Por outro, mostra-nos como encontra coerência na sua vida privada e na interação próxima com as crianças ao separar muito claramente as que merecem viver das que merecem morrer, aceitando a sua morte como inevitável à luz de um sistema mental que naturaliza a hierarquia social e a opressão, equivalendo a eutanásia a uma doença terminal. Torna-se assim possível ser amoroso e empático com umas crianças e literalmente esmurrar outras sem lhes dirigir palavra, projetando nelas a falta de empatia que ele sente. Asperger teve sucesso ao codificar no diagnóstico o valor social das crianças que chega até nós hoje como “autismo de alto funcionamento”. Esta é a perplexidade de Edith Sheffer: como é possível um diagnóstico tão influenciado pelo Nazismo ter tanta aceitação nos dias de hoje? A autora acompanha a vida de Asperger após o fim do terceiro Reich. Continuou a exercer e a ocupar cargos de destaque na Áustria mas não aprofundou o trabalho com as crianças que têm a síndrome com o seu nome. Distanciou-se do terceiro Reich, pondo-se como uma das suas vítimas e afirmou ter sido perseguido pela Gestapo, facto de que não existe nenhum registo. A sua tese teria sido esquecida se não fosse resgatada por Lorna Wing, psiquiatra britânica e mãe de uma criança autista que se dedicou ao tema após o diagnóstico da filha, publicitando a síndrome de Asperger, em 1981. Lorna foi das primeiras a considerar que o autismo devia ser visto além do funcionamento, centrando-se em características que redefiniram as fronteiras da categoria. Num encontro em Londres com Asperger, este permitiu -se discordar. O trabalho de Asperger chegou até nós limpo do contexto Nazi que o forjou mas a ideia de que existem crianças acima do normal encontrou ressonância nas sociedades democráticas. “Desejava não o ter feito”, diz Lorna arrependida perante o que saiu da caixa de Pandora quando a abriu. De facto, a ideia da hierarquia social assentar na biologia ou mesmo estar subjugada a ela por leis que a ultrapassam parece viver em diferentes regimes, mesmo quando a biologia sistematicamente a desacredita. Talvez seja necessário alterar a nossa concepção de vida para que os seres humanos se unam por espírito de justiça e não por Gemüt, como propunha o antifascista Mário Castelhano, para estender a solidariedade social a toda a humanidade. E mesmo assim seria pouco. A grande família universal dos humanos é uma utopia digna da lógica mais medíocre, já dizia Lautréamont.