Número 6

12 de Junho de 2021

CORPO, BELEZA E SAÚDE

Os perfumados

RITA SERRA

“Deve ser mesmo difícil cuidar de alguém por quem não sentimos empatia”, disse-me um amigo. Mas eu pensei: e o contrário? Não é nada fácil cuidar de alguém por quem sentimos empatia a mais.

“Por que és tão simpático?” Pergunta a entrevistadora a Kurt Cobain, numa das suas últimas entrevistas[1]. Compreende-se a pergunta ao vê-lo. É giríssimo e encantador. Um desassossego de pessoa. Inteligente e com sentido de humor. Sensível. Chora e tudo. O seu livro preferido é o Perfume, de Patrick Süskind. Diz ele que sente afinidade com a personagem principal, que se sente nauseada pelos seres humanos, que viaja de noite, se esconde e procura a distância destas criaturas. Diz-nos que se inspirou no Perfume para escrever “the scentless apprentice”[2]:

Hey

Go away, go away

Every wet nurse refused to feed him

Electrolytes smell like semen

I promise not to sell your perfumed secrets

There are countless formulas for pressing flowers

A história de Süskind é muito interessante. Bebé que nasce sem cheiro numa banca de peixe, que causa a estranheza dos demais ao ponto de ser recusado pela própria mãe, e que vai criando para si mesmo um cheiro nauseabundo para ser reconhecido como humano, mas que descobre que há algumas pessoas que cheiram mesmo bem, e faz delas um perfume.

Hey

Go away, go away

Go away

I lie in the soil and fertilize mushrooms

Leaking out gas fumes are made into perfume

You can’t fire me because I quit

Throw me in the fire and I won’t throw a fit

A história de Süskind não acaba bem. Quer dizer, depende da perspetiva. Num ato de suicídio, abusa do seu perfume e é comido vivo por uma multidão extasiada incapaz de resistir a tanta atração engarrafada.

Cobain pertence ao clube dos 27. E a sua história fez-me lembrar uma outra dum membro do mesmo clube: Jean-Michel Basquiat. Contam-nos no filme de Basquiat (Julian Schnabel, 1996):

“There was this little prince with a magic crown. An evil warlock kidnapped him, locked him in a cell in a huge tower and took away his voice. There was a window made of bars. The prince would smash his head against the bars hoping that someone would hear the sound and find him. The crown made the most beautiful sound that anyone ever heard. You could hear the ringing for miles. It was so beautiful, that people wanted to grab the air. They never found the prince. He never got out of the room. But the sound he made filled everything up with beauty.[3]

Ironia máxima. O som dum pedido de ajuda, nunca correspondido, ser tão encantador que enche o ar de beleza.

Cobain diz-nos, no seu vídeo, sobre o sucesso: “fazem de nós bodes expiatórios e transformam-nos em desenhos animados”. “Talvez devêssemos gastar todo o dinheiro que temos em advogados para nos proteger disto”.

A apetência por estes seres perfumados e os seus trabalhos foi de tal ordem que um dos quadros de Basquiat foi vendido por 110.5 milhões a Yusaku Maezawa, um japonês bilionário que faz coisas que não consigo compreender, entre as quais se conta um fato com pintas.

Bem, temos de ver as coisas pelo lado positivo. Pelo menos, Basquiat não foi comido. Não foi violado (que se saiba). Meteu uma speedball e deve ter feito uns lindos quadros na cabeça antes de partir.



[1] https://www.youtube.com/watch?v=3CTsGievjMU&t=739s
[2] https://www.youtube.com/watch?v=GyxoQIQaogE
[3] https://radiantchild.weebly.com/