No dia 21 deste mês de abril, sábado, às 10 horas da manhã, encontrei-me com Antónia Gato. De facto, tivera notícias e mantivera, alguns anos atrás, alguma correspondência com Antónia. Sabia que era a neta de António Gato Pinto, um camarada libertário do meu avô e que com ele estivera na Colónia Penal do Tarrafal. Mas, por um motivo ou outro, não aprofundei este conhecimento.
Tudo parece funcionar, na minha cabeça, como se a vida do meu avô Arnaldo não devesse ser tocada. Não gosto de saber que figura uma pequena biografia dele na exposição de longa duração do Museu do Aljube. Nem quando o referenciam em obras de jornalismo ou de história. Basta-me a evocação feita pela minha mãe, estórias que ouvi na infância, quase só a ela, quase só recordações dela.
Recordações de encontros entre ambos, das suas prisões e perseguições e sobretudo, desse ano de 1934, aquando da revolta do 18 de janeiro, em que ele acabaria por ser preso e levado para um suplício que só terminaria com a morte, em 1938, nessa ilha de Cabo Verde, um lugar que nunca quis visitar, que os governos da ex-metrópole e da ex-colónia nunca quiseram mostrar tal como era, um testemunho do caracter deliberadamente assassino do Estado Novo.
Agora, que a comemoração de 50 anos de liberdade avivou algumas memórias, eis que João Pina edita um livro sobre o seu avô, um tarrafalista. O Jorge Pratas e Sousa vê a fotografia onde Herculana de Carvalho coloca flores na campa de cada um dos presos mortos no Campo e reconhece o nome de Arnaldo Januário. A Rita Serra encontra a tese de 2019 de Antónia Gato, “Tarrafal: Resistir como Promessa, o poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza” bem como o programa de televisão onde ela dá conta da sua investigação. E eu volto a procurá-la, desta vez resolvido a conhecê-la, se for essa também a sua vontade.
E aqui estamos, ela chegada do Barreiro e eu de Coimbra, no Terreiro do Paço, junto ao Cais, como teria sucedido se António Gato tivesse encontrado Arnaldo Januário. Reconhecemo-nos. Abraçamo-nos longamente, sem palavras. Sabemos ao que viemos. Caminhamos um pouco, até Antónia propor que nos desloquemos ao Alto de S. João, ao cemitério onde está o memorial de 1978 com os restos mortais dos revolucionários que morreram no Campo. Antónia fala do avô, regressado após 15 anos de encarceramento, alvo das famigeradas “medidas de segurança”, uma disposição que praticamente se destinava a assegurar a prisão perpétua dos opositores. O nome dos legisladores da repressão, do infindável estado de exceção que permitiu o Campo, a sua localização e construção, o seu modo de funcionamento, o seu isolamento, as condições higiénicas, alimentares, e as medidas de segurança, os Tribunais Plenários, todo esse edifício, o nome desses catedráticos de Coimbra ou Lisboa, devia ser conhecido e lembrado.
Mas não serei eu quem o fará.
Não quero ser tocado pelo ódio do qual a minha mãe nos preservou. E não quero que este encontro simbólico, que permite acreditar que a luta dos nossos avós teve um sentido, possa ser contaminado por outra coisa que a luz intensa dessa manhã de Lisboa, dos olhos tão azuis de Antónia, da memória que ela construiu, inicialmente a partir dos escritos do avô, dos passeios nos pinhais na infância com o velho combatente que recuperava a saúde arruinada, e depois da investigação a que se dedicou, apoiada pelo orientador João Sedas Nunes.
Isso foi parte do que ela trouxe.
Eu levei o ano fatal de 1938: António Gato Pinto, tem 36 anos, o meu avô Arnaldo, 40 anos e vai morrer, Mário Castelhano, 42 anos, Acácio Tomaz de Aquino, 38 anos, Manuel Francisco Rodrigues, 36 anos, José Correia Pires, 30 anos, Bento Gonçalves, 40 anos, Joaquim Ribeiro, 28 anos, Miguel Wager Russel, 30 anos. O ano em que estavam todos juntos no Tarrafal.
No cemitério não há quase ninguém, nem junto ao mausoléu. Mas as placas que assinalam os nomes estão mais polidas do que há 8 anos. O cemitério, tal como aquela zona da cidade, tem um ar decadente. Cafés fechados, casas sujas, lojas encerradas de artes e ofícios obsoletos. Junto ao mausoléu, Antónia nomeia-os. São todos dela.
Os rapazes de Antónia que o desterro, os mosquitos dos pântanos, o Plasmodio, a biliosa anúrica, a desnutrição, a frigideira e a tortura levaram, ou quase destruíram na sua humanidade. Ela invoca-os. De cada um diz algo divertido, conta um episódio, a amizade que os unia, o modo como conservaram a sua diferente identidade militante. Eram rapazes corajosos, mesmo quando quebravam. Na sua tese percebe-se que estavam entregues à ralé do regime, um destacamento de sádicos torcionários, num território colonial povoado por gente que os ignorava e de quem sabiam pouco. Mas Antónia está ali, a declarar-nos aos dois como a prova da sua vitória.
Percebo que os olhos dela, afinal, são verdes. E vendo-a assim, ao sol benigno do meio dia de primavera, até parece ter razão.