Dr. Pichón R. entrevistado por Mariana Barros Silvestre para a Rádio Osso
— Boa noite, dr. Pichón. Queria começar por lhe justificar este incómodo de o trazer ao estúdio a uma hora destas. A produção achou que o seu público, que agora é também o meu, era… noturno. E destinou-nos este horário, que, só depois reparei, era afinal bem disputado.
— Não se preocupe, Mariana. Tem medo de que a nossa audiência seja restrita? Na Argentina, no tempo da ditadura, fizemos sessões com pouquíssimas pessoas. Lembro-me de ir a Villa Angela, Quitilipi, General Pinedo, no Chaco, falar em teatros e clubes onde havia quase tantos resistentes como informadores da Triple A. Ao contrário do que possa pensar, era estimulante. (Sonhador) — Gostava de pensar que o que estava a dizer seria reproduzido num relatório, no castelhano rude de um informador semianalfabeto, que não sabia quem era Foucault nem Derrida, mas que se esforçara por perceber que aquilo que ouvia, era uma fala de um outro mundo, diferente daquele circo claustrofóbico, de gente que seria presa e de esbirros da tortura que os denunciariam.
— Ai dr. Pichón, que lembranças. Sabe uma coisa? O meu namorado ouviu o nosso último programa.
— E disse que a Mariana esteve muito bem?
— Não. Não é muito de me elogiar. Gostou de si, dr. Pichón, veja lá. Disse que lhe podia sugerir alguns temas, que o dr. Pichón Rivière era uma espécie daquele psicólogo que fala de tudo numa estação nacional, com a vantagem do doutor ser argentino. Estive a ver. O senhor nasceu na Suíça, os seus pais eram socialistas franceses, emigraram para a Argentina. Fundou a Associação de Psicanálise Argentina. Deu contributos originais para a abordagem da saúde Mental…
— Chega, Mariana. Por favor. Não sei quem é esse psicólogo com quem o seu namorado me está a comparar, nem percebo se isso é elogioso ou pejorativo. (O dr. Pichón sorri, como aquelas pessoas que poem um coração depois de uma frase que podia parecer agressiva) — Deixe-me voltar ao que disse sobre a hora tardia deste nosso programa.
— Tardia, sim. Até parece que estamos a falar mais baixo. (Mariana, sussurrando)
— Isso mesmo. Temos a vantagem de ter connosco os ouvintes mais fiéis, porventura os mais exigentes. E o dever de aproveitar esta contingência para abordar problemas mais delicados.
— Eu estava a mentir, dr. Pichón. O que o meu namorado disse é algo parecido ao que o senhor relatou sobre as suas sessões de esclarecimento em Salta, durante a ditadura. Ele disse que o doutor falava de um outro tempo. (Mariana enfatiza outro tempo como se os seus lábios desenhassem uma frase em itálico) De um tempo diferente do tempo medíocre em que porventura nos escutam. (O dr. Pichón R. não replica e Mariana prossegue) — Então se o dr. Pichón está com essa disposição, eu atrevia-me a pedir para falar sobre algo que, na sua vida profissional não tenha tido a coragem, ou a possibilidade de enfrentar claramente.
— Escolho a questão das crianças queer. (a rapidez da resposta surpreendeu Mariana)
— Como assim?
— As crianças que não são nem azul nem cor de rosa. Nem princesa, nem homem aranha.
— O homem aranha é um símbolo de masculinidade para as crianças? (Mariana ri-se e depois fala, como se pensasse alto) — Tão frágil! Órfão, estudante de cursos técnicos, magricela, longilíneo. De pulsos abertos, para uma baba que sai às golfadas. Sempre esgueirando-se nas fendas. Não usando a força bruta, mas a elegância, a capacidade de reconhecer e aderir às diversas superfícies.
— Tem razão, Mariana. Não me sinto à vontade no universo Marvel. Assim visto, o seu Homem Aranha, Peter Park, não era?, mais parece um herói queer.
— Podemos começar por aí? A que chama queer?
— Se quiser uma definição, diria que é uma corrente de pensamento que recusa, nas palavras de Paul B. Preciado, “a epistemologia binária do Ocidente”. O sistema cartesiano dualista que representa o mundo como uma oposição de dois princípios. A matéria e o espírito. A vida e a morte. A alma e o corpo. O senhor e o escravo. O eleitor e o eleito. O pensamento e a ação. O proprietário e o assalariado.
— A entrevistadora e o entrevistado. (Pichón ri-se e Mariana continua) — Mas não é sobretudo um termo aplicado a questões…como se diz…de género?
— Sim, a teoria queer recusa a distinção masculino-feminino; homossexual-heterosexual e de certa forma, pelo menos através de alguns dos seus mais interessantes pensadores, questiona todas as identidades de género – incluindo a transexualidade e a intersexualidade.
— Ser queer é, então, ser gender-fluid? Quem são esses pensadores tão interessantes que referiu?
— Os que permitem reconfigurar a realidade depois da crítica impiedosa que feriu de morte o masculinismo tóxico, o capitalismo patriarcal. Monique Wittig, por exemplo, que questionou “a norma de atribuição de sexo” e foi uma notável, e inclassificável, ensaísta e escritora. (o dr. Pichón gosta da atenção concentrada de Mariana e prossegue)— Ursula K. Le Guin, a escritora norte-americana que, por exemplo através das obras de ficção científica, como Left Hand of Darkness ou Coming of Age in Karhide trouxe para a literatura personagens não binárias.
— Também escreveu estórias para crianças, essa Le Guin.
— Para todas as idades, não é? (o dr. Pichón não permite a interrupção e continua a enumeração) — Donna Haraway.
— O Manifesto Ciborgue! (Mariana está imparável)
— Conhece? Há uma edição em português?
— Em português de Portugal, não. Quer dizer não conheço. Mas o meu namorado tem uma edição em castelhano, cujo título é Manifesto Haraway, editada aí há 30 anos e que pertencia à mãe dele. “Cyborg Manifesto”, eu li os sublinhados. Ela questiona essas divisões de que está a falar— homem e máquina, género, classe, raça, sexualidade…
— Mas gostava sobretudo de falar de Paul B. Preciado.
— Fale, doutor.
— Também conhece?
— Como se fosse possível conhecer Paul B. Preciado. Nascido Beatriz Preciado, em Barcelona, escreveu livros fantásticos como o Manifesto Contrasexual, iniciou um processo de toma controlada de testosterona que acabou naquilo a que chamou “uma migração de género” até assumir uma nova identidade, desta vez masculina, com o nome de Paul Beatriz Preciado, Paul B. Preciado.
— Fantástico. É muito difícil escrever sobre ele, quando se acabou de ler, por exemplo, esse livro que uma editora vossa agora editou e que se chama Um Apartamento Em Urano. Porque ele usa uma linguagem explosiva, que vem das Ciência Sociais e da ficção, que não tem fronteiras…
— Justamente porque se reclama da fronteira…
— Da transição. Tal qual. Do rio sem margens. Da migração, para voltar a usar a expressão que ele utiliza, tentando aproximar a sua história pessoal, de “migrante de género”, com a dos milhares de migrantes que estão em movimento, neste momento, em todas as partes do mundo. Esta migração inventa uma nova língua, para exprimir uma realidade nova, onde se manifestam corpos novos, que têm em comum levar a cabo práticas de experimentação social, sexual, cultural, artísticas… diferentes.
— Que têm em comum, então, a negação de uma identidade fixa?
— Sim, isso mesmo. Seja essa identidade, de atribuição social e legal, como a que o sistema de catalogação biológico-científico institui desde logo nas consultas de gravidez e nas Maternidades…
— Seja uma identidade de chegada? Como no caso dos transexuais?
— Mesmo nesses casos. Paul foi durante anos uma lésbica queer, depois um corpo gender-fluid, em seguida entrou num processo de reatribuição de género e finalmente tornou-se um transexual masculino. Mas clamou que não era nada disso. Era sempre outra coisa. Nas suas palavras, era “um dissidente do sistema sexo-género”. Mais tarde falou da superação de uma epistemologia racial e da diferença sexual. De um novo código que permitiria afirmar a diversidade da vida em todas as suas expressões.
— Mas será possível que essas vidas se desenvolvam e construam uma nova realidade? Sobretudo agora, em que a velha ordem natural, patriarcal e heterossexual parece ter regressado, e com vontade de derrubar uma década de tolerância?
— É essa a questão, Mariana. Se me permite vou repeti-la: Será possível realizar as utopias que Ursula K. Le Guin, por exemplo, ficcionou? Será possível que isso aconteça num quadro político de autoritarismo, de violência masculina e colonial, ou para usar termos que são caros a Paul B. Preciado, de um novo ciclo dos poderes edipiano-fascistas ?
— Quer responder?
— Não sei se é possível. Era o que perguntavam nas sessões de esclarecimento de Salta. Será possível, doutor Pichón? Quem tem as armas são os militares de Videla. Os milicianos do Triple A. Tudo isso de que nos fala, não vale nada contra a brutalidade de uma metralhadora.
— E com isto afastámo-nos da criança queer.
— As crianças queer que estão a nascer não se afastaram destas questões. O sistema legal vai atribuir-lhes um sexo e um género, de acordo com o dualismo existente. Os pais, os padres, os professores e os médicos educá-los-ão de acordo com o modelo heterossexual, ignorando ou reprimindo eventuais dissidências. Os ateus deste sistema terão de cavar a sua resistência.
— Estamos em Salta, vai perguntar o meu namorado?
— Veremos, Mariana. Esperemos pelas reações dos ouvintes da Rádio Osso. Eu estou à vontade. A Ordem dos Médicos Argentina não tem jurisdição em Portugal. E entreguei o cartão em 1977.
Um Apartamento em Urano, Paul B. Preciado, Bazarov Edições