Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Ângelo de Lima
Partindo da Rua da Alegria no caminho através da Cerca de S. Bento, ou do que resta dela, alinhadas numa vala ou formando círculos entremeados de silvas, encontramos um conjunto de pedras esculpidas. São blocos resultantes da demolição da antiga Igreja de S. Bento. Mais precisamente, da desmontagem dos caixotões da abóbada da capela-mor e dos arcos de entrada das capelas laterais. A Igreja existiu no local onde hoje passa a Rua do Arco da Traição, anexa ao Colégio que tem o mesmo nome. Era, pela sua dimensão e elegância, um edifício emblemático da Velha Alta de Coimbra. Construída no início do século XVII, foi dessacralizada depois da extinção das Ordens e entregue à Universidade na terceira década do século XIX. Caserna de soldados embrutecidos, estaleiro de obras, sala de atos dos estudantes do Liceu, ginásio de rapazes, foi o próprio reitor quem se bateu, repetidamente, pela sua demolição. Finalmente conseguiu, depois de votação no Senado e com a aprovação dos professores. Diz-se que era tão “bela, simples e austera” [i] que os operários choraram ao desmontá-la. Em 2012, um aluno de Arquitetura de nome Fábio Castro escreveu uma dissertação de Mestrado sobre esta igreja, a partir de uma ideia de Paulo Varela Gomes e com a orientação de Rui Lobo. Aí aprendemos que em Agosto de 1931, no termo de um longo processo, “foi superiormente autorizada a demolição do velho edifício da igreja de São Bento, com restrição do teto da capela mor, que iria ser ‘apeado’ e entregue ao bispo da diocese a fim de lhe dar o destino que entendesse.” [ii] Em 1932 a igreja começava, assim, a ser demolida. Quanto à abóbada da capela-mor, as suas pedras foram depositadas no recinto do Liceu D. João III, atual Escola Secundária José Falcão, onde repousaram, incógnitas para as gerações que aí estudaram, até que quase noventa anos depois, em 2019, a UC anunciava que “estão de regresso à cerca dos beneditinos, para ser inventariados e estudados, para que posteriormente a Universidade, em conjunto com especialistas e as entidades competentes, defina um plano de valorização deste património” [iii].
Mas a maior parte das pessoas que cruzam as pedras de que falo ignora a sua proveniência. Um destes dias de março, vigorava ainda o segundo confinamento, dei comigo a subir o carreiro que parte da Porta da Alegria e acaba no Quadrado Central do Jardim. Estava um fim de manhã quente, com o céu coberto de nuvens e o ar carregado de eletricidade. Canso-me um bocado, nesta subida, e a minha companheira, mais lépida, levava-me uma considerável dianteira. Tinha chegado a meio da colina. O chão estava coberto de erva tenra e de exuberantes folhas de acanto. Quando alguém escreve folhas de acanto é como se escrevesse exuberantes folhas de acanto, como se escrevesse capitéis coríntios, exuberantes capitéis coríntios. Acanto é o exuberante par de capitel coríntio. E ali estava eu, levantando os olhos do rumorejante chão para o Colégio onde a Universidade instalou a Antropologia e a Botânica, procurando a sua fachada sul e encontrando a Rua do Arco da Traição. Foi quando se me parou o pensamento [iv].
O que acontece quando se nos para o pensamento?
Neste caso continuei a subir, pelo bambuzal. Ou por um dos carreiros que sobem ao muro. Ou continuei parado e foram apenas os olhos que se moveram nos minutos seguintes, ao se deterem no vazio em cima. Vi o Liceu D. João III, trinta anos depois da demolição da Igreja. Desconhecia tudo. Eu era como os estudantes que cruzo esta manhã, vivendo a hora presente sem perceber as camadas sobre as quais assentam as botas. Aos dez anos não perguntamos a idade às casas onde decorrem as nossas vidas. Desconhecia a história do Liceu, que não existia na geração dos meus pais. Que inocência a nossa. Só muito mais tarde dei conta da destruição que se operara na velha Alta da cidade, a parte final da qual eu tinha presenciado, sem o saber. A demolição de um dos arcos do Jardim, de parte do Bairro Sousa Pinto para a construção das Monumentais, da Praça D. Dinis e dos edifícios atuais das Físicas e das Matemáticas. A felicidade assenta na inocência e só a infância pode ser feliz. A criança sábia que apesar de tudo fui não aguentaria tanto passado.
Ao contrário de tantos edifícios que transportavam 400 anos de história, aquelas pedras, agora dispostas ao longo do caminho à espera de um “plano de valorização do património” resistiram. Alguém recuperou, nos livros, o seu percurso e as levantou, de novo. Também na vida das pedras nada será esquecido. E voltaram para muito perto do lugar onde foram talhadas e onde assistiram aos ofícios dos humanos, à expressão ingénua, ou elaborada, da sua fé. E inspiraram uma tese, o trabalho de um ano académico. E as esperanças de uma professora, de gente simples, cuja vida é elaborar projetos, concorrer a verbas, salvar o património.
Do lugar onde agora foram colocadas as pedras olham para a Rua do Arco da Traição e aspiram a uma nova ascensão. As pedras sobem, aproveitando a paragem do pensamento e a suspensão do tempo. Sobem, pela poalha de luz que o céu carregado filtra. Sobem, pelo trilho aéreo que o pensamento parado desenha. Sobem.
[i] Albrecht Haupt, filósofo alemão do séc. XIX, citado por Fábio Castro in Igreja de São Bento de Coimbra: análise e reconstituição, Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, apresentada ao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. http://hdl.handle.net/10316/20893
[ii] Maria Judite Seabra O Liceu Central de Coimbra e a Igreja de S. Bento, in Munda: revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, nº47, Coimbra, GAAC, 2004, pp.67-77.
[iii] Notícias da UC, 4 de fevereiro de 2019, intervenção da Prof. Dra Maria de Lurdes Craveiro
[iv] Ilda Moura, Facebook, comentários