Ator com carreira no teatro, cinema e na televisão, foi na poesia que Pedro Lamares encontrou o ritmo certo para “a reconstrução do mundo”. Encenador, formador, diseur… É desta amplitude que ecoa uma voz para nos devolver o mundo daqueles que sonharam ser poetas.
— Quando é que a poesia entrou na sua vida?
Entre a infância e a adolescência. O meu avô paterno escrevia poemas. O meu padrasto era leitor de poesia, havia alguma lá em casa, da boa. O meu pai fazia tertúlias de amigos onde tocava guitarra, cantava, diziam-se poemas. Aos 13 anos, o meu padrasto teve a irresponsabilidade de me passar para as mãos a sua edição d’O Guardador de Rebanhos, do Caeiro. O meu professor de Português ainda tentou salvar a situação, proibindo-me de ler Pessoa naquela idade, mas já estava o caldo entornado. Mais tarde, em casa do meu avô, comecei a ouvir os discos do Villaret e do Viegas a dizer poesia. Foi a tempestade perfeita.
— Começou nas artes plásticas, ainda andou pelo jazz e, a determinada altura, entrou numa licenciatura em música sacra. Porquê a música sacra?
Não tenho a certeza de ter uma resposta satisfatória, mas serei honesto. O que eu queria mesmo era ser músico de jazz, mas na altura nem havia curso superior no Porto, nem eu estava pronto, ainda que houvesse. Ao mesmo tempo ouvia Bach e Mozart e, apesar de não ser católico, pensava: se a música sacra é isto, gosto! Foi uma experiência enriquecedora, fiz um ano de preparação para a licenciatura, mas não sei puto daquilo que aprendi. Ficou só a experiência e a sensação. E o gosto manteve-se.
— O Pedro diz um poema de Valter Hugo Mãe, que lhe foi dedicado. Porque lhe foi dedicado?
O poema chama-se “coisinhas preciosas para meter no cu”. Fala de um menino que era espancado pelo pai por brincar com as bonecas da irmã. Sempre brinquei com bonecas, com a minha irmã e as minhas primas, mas não fui espancado por ninguém nem maltratado pelo meu pai. A história, em si, não é pessoal. O Valter diz que o escreveu a pensar na minha sensibilidade humana e na forma como trabalho o texto na sua oralidade. Diz que o construiu com tiradas longas, de grande fôlego, por gostar de me ouvir nesse registo, por exemplo. E que o fez também a pensar no trabalho que eu faria com ele. E faço, de facto, há uns 14 anos, ou perto disso. É sempre uma ratoeira divertida nos espetáculos. Primeiro, a vaidade, dizer que vou ler um poema do Valter que me é dedicado. Depois a surpresa e a descompressão cómica, quando digo o título. Depois a sova, a dureza do que é dito e o momento em que a frase do título (sem o ‘preciosas’) é dita agressivamente pelo pai do menino, quando já ninguém tem vontade nenhuma de rir e há até um clima de uma certa vergonha por se terem rido dessas mesmas palavras. Por fim, o debate motivado pelo texto: papéis de género; brincar com bonecas vs. brincar com armas: qual das duas é mais bem vista?; homofobia; passividade perante a agressão física, verbal e/ou emocional; até sobre a disparidade com que o audiovisual entende como pudor necessário no que respeita ao erotismo em contraste com a violência explícita como ferramenta de entretenimento. Dá pano para mangas…
— Há uma dimensão política na poesia?
A arte tem de ser livre, não tem de ser política. Isso é uma escolha de cada artista, embora acredite que é difícil um gesto em direção a um coletivo não ser, no sentido mais lato, um gesto político. Claro que só posso falar por mim, não posso afirmar se todos os criadores, intérpretes ou poetas têm ou não essa consciência ou interesse na sua expressão artística, mas a arte continua a ser uma das ferramentas possíveis (e poderosas) para tal. Posso falar no meu caso e no valor que dou ao ativismo que escolhi exercer através do meu ofício, nomeadamente através da poesia que escolho dizer, e em que contexto, bem como os espetáculos que crio e dirijo. Refiro, ainda assim, que tenho a convicção de que alguns dos poetas que levo frequentemente a palco – Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Ana Luísa Amaral, Francisca Camelo, Filipa Leal ou Valter Hugo Mãe – são exemplo desta expressão poética que não é de todo indiferente ao seu contexto social e histórico. São poetas que nos levam a questionar sobre a sociedade em que queremos viver e o que estamos dispostos a fazer por isso. Sophia escreveu que “este é o meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo”. É esta a minha ferramenta para procurar intervir na sociedade em que vivo.
— “A Poesia é uma arma carregada de Futuro”?
Para mim, sendo otimista e utópico por natureza, penso que, historicamente, a poesia teve e continua a ter essa força. Citando Gabriel Celaya no tal poema que dá nome a um dos meus espetáculos — “A poesia é uma arma carregada de futuro”—, “maldigo a poesia concebida como luxo cultural pelos neutrais que, lavando as mãos, se desinteressam e evadem”.
Sou da opinião que a arte não é, em si, panfletária, mas também pode servir como força de combate, como diz Zé Mário Branco em “a cantiga é uma arma”, sobretudo agora que temos assistido a um crescimento por todo o mundo ocidental de novos partidos e líderes que vem perfilhando, de forma desenvergonhada e populista, ideologias e discursos de base xenófoba, racista, homofóbica e machista. Mas também num espectro mais alargado, à escala planetária, com um genocídio em curso na Palestina, a Ucrânia invadida, várias guerras civis e um número absurdo de governos autocráticos e ditatoriais, de esquerda e de direita. Não ver isso é alienação. Subvalorizar é desumano. Não colocar o trabalho ao serviço do combate a essa alienação, é uma escolha de cada um. Eu escolhi ‘sujar as mãos’, piscando o olho ao Celaya. Assumo procurar, nestes meus espetáculos, estimular o pensamento crítico através da emoção, fomentar o diálogo democrático e a reflexão em torno de alguns dos temas mais duros da nossa sociedade, seja em contexto escolar ou para público geral.
— Representou Fernando Pessoa no filme “ Filme do Desassossego” de João Botelho. Como foi essa experiência?
Foi assustadora, deslumbrada, no alto dos meus 31 anos à época, e maravilhosa. É uma figura que me diz muito, o Pessoa. E foi a minha primeira longa, e logo com o Botelho. Mas ele foi muito livre na abordagem e inteligente na direção. Disse-me qualquer coisa muito parecida com: ‘Pedrinho, eu não preciso, nem quero, que faças um retrato documental do Pessoa. Para isso temos a BBC que faria muito melhor do que nós. Eu quero é que construas o Sr. Pessoa para o meu filme’. Assim fiz, como soube. Depois a experiência prolongou-se porque o filme andou em digressão como um espetáculo, apenas com uma projeção de cada vez, a fazer o país todo em teatros e cineclubes. Essas projeções eram acompanhadas de um debate. No início, era o João Botelho que fazia e alguns de nós, no elenco, éramos convidados para ir aqui ou ali. Depois o João e a produção passaram esse trabalho para mim e andei meses a correr o país para debater com o público a falar de cinema e de Pessoa. Foi uma experiência maravilhosa e privilegiada.
— Numa época em que tudo é demasiado rápido, em que tudo está disponível quase no imediato, é necessário tempo para nos dedicarmos à poesia?
Para quem a quiser ler, sim, é. E a nossa capacidade para nos determos demoradamente está a diminuir, creio. Mas ao mesmo tempo também está um tanto na moda, dentro de um certo nicho, principalmente as leituras e performances com poesia. O meu trabalho é ler, escolher e dizer para os outros. Criar espetáculos a partir da ferramenta poética, pelo que agradeço essa moda que entretanto foi crescendo. Depois, pelo consumo e partilha rápida, através da net e sem recurso aos livros nem investimento de tempo para procurar fontes fidedignas, cresce exponencialmente a criação e difusão dos textos apócrifos — mal atribuídos ou profundamente alterados — que medra pela internet como cogumelos e, daí, para as paredes de escolas, hospitais, ou até de bibliotecas públicas (sim, já encontrei). O Pessoa e a Clarisse Lispector, com pena de muita gente, nunca escreveram autoajuda nem posts motivacionais. E as “pedras no caminho”, quem as guardou para construir um castelo, foi um blogger brasileiro que assina Nemo Nox. Um dia li uma entrevista em que a jornalista lhe perguntava se não se sentia injustiçado pela sua frase (saída de um texto maior) ser atribuída ao Pessoa. Respondeu com muita graça: “textos mal atribuídos, guardo-os todos. Um dia vou construir uma tese”.
Fotografia de Estelle Valente EGEAC