Número 16

11 de Dezembro de 2021

PAIS E MÃES PARA FILHAS E FILHOS

Peritos

DR. PICHÓN R

Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R. | T2 E5


Onde ambos se revelam peritos de peritos

— Boa noite, dr. Pichón.

— Boa noite. Regressamos às velhas formas de tratamento, Mariana. Registo.

— Nada disso, dr. Pichón. O nosso diretor encomendou um inquérito de satisfação aos ouvintes de Rádio Osso. E parece que eles não apreciaram a nossa familiaridade. (misteriosa)

— Mas será que queremos conquistar audiências? Não era este um programa sem linha editorial? Devemos adaptar-nos aos gostos de ouvintes que desconhecemos.

— Bom, agora já não podemos dizer que desconhecemos. Pelo menos o nosso diretor conhece. Conhece o perfil do ouvinte… devia dizer… da ouvinte. Os gostos literários. A banda preferida. A popularidade de cada um de nós…

— Ah, isso é interessante. E pode revelar alguns dados? A Mariana, pelo menos, deve ter alguns ouvintes que a apreciem. Depois do que disse da noite das crianças…

— Engana-se, Enrique…

— Ooops.

— Desculpe, dr. (solene) —Não volta a acontecer… Dizia eu que se enganava. Entre nós os dois, o mais popular é…

— …?

— O meu namorado. Precisamente.

— Devia ter adivinhado. E há mais dados interessantes?

— Os temas que os inquiridos propõem para abordarmos, através deste diálogo peripatético.

— Sem sairmos do mesmo sítio…

— Nós não. Mas os temas são movimentados. (Mariana fala muito rapidamente)Querem que falemos da Mulher e do Poder; do Natal na Pandemia; do regresso pujante do Teatro e da decadência do cinema enquanto audiência coletiva. Querem que falemos do regresso dos Divine Comedy a Portugal, da Rita Vian, da Francisca Cortesão e dos Minta & The Brook Strout, da representação parlamentar da Esquerda em Portugal, (brrrr!) das Vacinas e dos Comités de Peritos. (o dr. Pichón parece meditar sobre o que o leva a perder tempo com estas entrevistas. Na verdade o tempo não conta para ele. Regressando à realidade, exclama)

— Como assim? Comités de peritos?

— Pois gostava mesmo de ouvir a sua opinião sobre os “comités de peritos” que são consultados em torno das grandes opções da luta contra a pandemia do SARS-Cov2, por exemplo. (Mariana, agora em registo de grande formalidade)

— Ah, sobre isso. Mas eu não sou especialista em…

— Precisamente. (Mariana interrompe, agora com inesperada vivacidade) — Quando prestam declarações, por vezes mesmo enquanto decorrem os trabalhos das comissões, eles começam sempre as intervenções dizendo que não são especialistas na área relativamente à qual estão a ser ouvidos.

— Mas isso acontece com os comentadores, sobretudo…

— Acontece com todos, dr. Pichón. Esteja atento e verá que tenho razão.

— Então, nesse caso, estamos preparadíssimos. Não conheço mesmo ninguém que esteja tão preparado para falar sobre peritos.

— Pode-se dizer que, não sendo peritos de coisa nenhuma, estamos qualificados para ser peritos de peritos.

— Desde que façamos esta declaração prévia.

— Já que falou em declarações prévias… (Mariana acha que deve pôr alguma água na fervura) — Não lhe parece que os peritos consultados deviam fazer uma declaração de compatibilidade de interesses?

— Sim, deviam. Mas não acho que haja interesses incompatíveis com um serviço público de aconselhamento dos decisores. Porque é disso afinal que se trata, não é? (o dr. Pichón prepara-se para teorizar) — Os decisores rodeiam-se de especialistas em determinadas áreas, para tomar decisões bem informadas, consensuais. E sendo assim, os peritos podem estar, direta ou indiretamente, ligados a interesses económicos, mesmo que estes dependam dos decisores.

— Mesmo que os interesses económicos envolvidos dependam dos decisores? (Mariana sublinha a frase, falsamente escandalizada)

— Os interesses económicos estão sempre dependentes das decisões políticas. (o dr. Pichón, com voz de autoridade na matéria)

— O Enrique acha então que os peritos podem estar ligados a interesses económicos, mesmo concorrentes, desde que os declarem. Desculpe a minha perplexidade. Então, para si, não há interesses incompatíveis?

— Não digo que não haja interesses incompatíveis. O que digo é que é difícil imaginar, hoje, um perito em vacinas que não trabalhe também para as companhias farmacêuticas que investigam e produzem vacinas, um perito em imunologia que não faça investigação de testes rápidos de deteção de vírus, um epidemiologista que não esteja envolvido na definição da dimensão e composição das amostras nas fases II e III de experimentação clínica das novas vacinas e medicamentos, ou mesmo a trabalhar em empresas que constroem cenários de risco na evolução da pandemia. Enfim, é difícil imaginar peritos de ética que não tenham integrado Comissões de ética de Empresas ou de Agências Reguladoras…

— Estou a perceber o seu ponto de vista. Quer dizer que devemos aceitar as Comissões de peritos…, mas com alguma reserva? Ou está a fazer ironia e a sua posição é… niilista? (Mariana, como se se tivesse apercebido apenas agora do significado destas opiniões)

— De forma nenhuma, Mariana. Estou apenas a discorrer sobre as precauções que devemos tomar ao ouvir falar os peritos, as suas recomendações e as das Comissões que os integram. Quanto a estas devemos, por exemplo, verificar se a sua composição é diversificada. Se o CV dos participantes não remete para o mesmo tipo de interesses.

— Mas não é o Estado quem convida os membros destas Comissões?

— Geralmente, o Estado escolhe o presidente, e este, depois, escolhe a equipa. Sempre segundo os seus critérios. A constituição final do grupo é ratificada pelo dirigente que tutela esta área do governo.

— Percebo. Quer dizer que as Comissões refletem a escolha do governante a que reportam e a do seu presidente, escolhido diretamente. E isso constitui um defeito genético, uma malformação? Ou uma deformidade?

— Uma malformação – um defeito na constituição de algum órgão ou conjunto de órgãos. (o dr. Pichón faz uma pausa, antes de recomeçar, como se recitasse) — Mas também uma deformidade – uma anomalia funcional ou estrutural, presente no momento do nascimento ou que se manifesta em etapas mais avançada da vida.

— As Comissões de Peritos transportam consigo, assim, sempre segundo a sua opinião, dr. Pichón, uma malformação e uma deformação.

— Sim, não uma, mas várias. Depende da composição.

— É uma espécie de pecado original. Não deviam existir, é isso?

— Deviam, claro. Sendo que o seu trabalho, como outro qualquer, deve ser lido com distanciação.

— Que acha de ouvirem peritos de Ética?

— Acho muito bem, e serve para explicitar melhor o meu ponto de vista. Um perito de ética é alguém que dedica parte ou a totalidade do seu trabalho ao estudo e reflexão das grandes questões éticas. A participação de peritos de ética em Comissões de aconselhamento dos governos é, deste ponto de vista, ainda mais difícil de apreciar. Se nos interrogarmos sobre de que forma eles se posicionam relativamente a grandes interrogações do nosso tempo, do tipo, de onde vêm os valores morais, o que explica as nossas crenças e aspirações, qual o papel da biologia e o da cultura, o que é a justiça, há um sentido para a vida, como devemos acolher os estrangeiros, como nos devemos relacionar com os outros animais, qual a nossa responsabilidade para com as gerações futuras, de que forma gerimos o planeta, como garantir o acesso e a distribuição dos bens fundamentais…

— Sim, sim, dr. Pichón, onde quer chegar agora?

— Quero apenas dizer que o estatuto de especialista em ética, de um perito, apenas dá uma certa garantia de que ele, provavelmente, dedicou mais tempo do que os imunologistas a pensar sobre estas questões.

— No entanto, todas estas questões, que tanto o impressionam, estão presentes na Imunologia…

— De certa forma. (risos) — Podemos dizer que a forma como os mamíferos construíram o sistema imune, um processo de enorme complexidade de reconhecimento do Outro, percorrido por múltiplas linhas, gerando respostas inatas e adaptativas que tentam compreender e muitas vezes conviver e cooperar com esse Outro, é fundamental para imaginar o nosso lugar no mundo, a atual pandemia e…

— … e as vacinas?

— … e a moderna vaccinologia, sim.

— O senhor acha que os imunologistas estão mais preparados para dar respostas éticas? Pois eu quando leio sobre imunologia vejo que a descrição do sistema imune é sobretudo bélica. A resposta imune não é descrita quase sempre como uma ação defensiva relativamente a elementos estranhos (Mariana endureceu a voz) — Estrangeiros: os Antigénios? Os Antigénios, não são o Inimigo? O reconhecimento do inimigo não leva necessariamente à sua neutralização, eliminação, destruição?

— Esqueceu-se da metabolização? (irónico)

— Sempre pensei que metabolizar fosse uma forma de integrar no organismo. De alterar, através de reações químicas, de forma a permitir que o diferente se torne semelhante… e passe a funcionar como parte do organismo invadido.

— Essa maneira de ver a resposta imune não recomenda os imunologistas para uma mesa intercultural. (o dr. Pichón sorrindo)

— A “nossa” Comissão está a ficar deserta. Sem imunologistas, nem especialistas de ética…

— Restam-lhe os infeciologistas. (Pichón, condescendente)

— Mas esses não serão os piores? Infeção, não é a invasão para provocar doenças? Sempre pensei que um infeciologista fosse um homem de máscara, com dois pares de luvas e um clister de limpeza nas mãos.

— Um homem ou uma mulher. Hoje deve pensar num infeciologista como uma mulher… (Pichón, matreiro)

 — … com dois pares de luvas… Mas, tentando pôr um pouco de ordem nesta conversa, o dr. Pichón vê mesmo algum interesse nestas comissões de peritos?

— Vejo, sim. Embora perceba a dificuldade dos decisores em tentar separar, nas intervenções dos peritos, o que é saber e o que é ideologia. De facto, para lá do que diz respeito ao seu campo estrito de saber, nada separa uma opinião de um perito, da de uma pessoa comum. Os peritos são pessoas comuns, com sistemas de crenças e superstições comuns, simpatias políticas, opções de vida, gostos e preferências comuns. O que lhes dá individualidade é um conjunto de informações sobre um aspeto da realidade que é suposto ele dominar de forma superior. Mas mesmo este, desgraçadamente, está contaminado.

— O melhor é mesmo os decisores não ouvirem os peritos. (cortante, imitando um antidemocrata)

— Os decisores têm de ouvir os peritos. Temos todos obrigação de nos ouvir uns aos outros…

— Mesmo que isso resulte num ruído insuportável?

— Que estultícia, Mariana, seremos diferentes, nós?

— O meu namorado acha que é diferente. Diz sempre “os portugueses”, eles, como se não fosse deste país e apenas um sociólogo em trabalho de campo. 

— O seu namorado, Mariana, é certamente um perito em portugalidade. Proponho que acabemos hoje por aqui. E que nos preparemos para os telejornais, agora que nos revelámos como peritos de peritos.

— Estou preparadíssima, dr. Mas olhe, esqueci-me de lhe dizer: não há pessoas comuns.