“Ensinar, hoje, é atirar pérolas falsas a porcos verdadeiros”. PUA – Professor Universitário Anónimo
Ao longo da minha vida, espalhei várias pérolas pelo mundo. Agora chamo-as a mim. Todos os meus tesouros escondidos, todas as minhas bolotas e pedrinhas favoritas, os meus livros por ler. Todas as epifanias, todas as cartas enviadas em garrafas para o mar profundo.
A minha suspeita natural por metáforas, automaticamente, impõe-se.
O que é uma pérola? O que é um porco? O que é atirar? O que é a pérola para o porco, e o que é o porco para a pérola? Porquê atirar, e não outro verbo qualquer? E se tenho pérolas, e se as chamo, o que sou?
Ao longo de seis meses, li bastante sobre pérolas. Não percebi muito, claro, porque a minha atenção dispersou-se por vários domínios. Escrevo aqui o destilado.
A pérola nasce da irritação da ostra. É produzida camada a camada, para envolver o objeto irritante, e separá-lo de si. Digamos que é uma espécie de bogalho, do qual o objeto ou ser irritante não sairá nunca.
É difícil saber qual é a relação do animal com a pedra. Se a ostra a cospe, farta dela e de si, se a liberta ou se é roubada. Se cospe, é porque a pérola é uma excrescência. Trata-se então de um bezoar, uma concreção particularmente adorada por uma espécie colecionista (nós). Se a liberta, é porque abandona uma parte de si que lhe pesa, demasiada bagagem que, uma vez processada, pode seguir a sua vida própria no mar do esquecimento. Se é roubada, é o ato duma violação ostroiana, e todas as pérolas deviam ser atiradas ao mar por justiça histórica.
Infelizmente, apesar de não sabermos o valor que a ostra dá à pérola, temos de assumir com plausibilidade que está a ser roubada. A pérola é fruto do seu trabalho de vida, e a única coisa que sabemos é que tem valor para outros. A pérola passa a ser assim, definida não pelo seu produtor, mas por quem a sabe apreciar.
É Mateus que nos avisa dos porcos. “Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se contra vocês, os despedaçarão”. Esta advertência vem numa forma particularmente gráfica. Cheira-me a transcendência, e recuso-a. Deverei dar as minhas pérolas a deus, o único capaz de as apreciar? Só deus valoriza? A terra é uma pocilga fedorenta cheia de animais brutos, incapazes de distinguir uma pérola de qualquer outro calhau, ou pedaço de dente partido?
Não percebo de porcos, animal. Mas pegando no que fui construindo, eu não sou ostra, sou uma ladra de pérolas a que só eu reconheço valor. Como animal social que sou, quero partilhar as pérolas que encontro. É na recusa da partilha que nasce o porco. Pior. O animal pecaminoso é criado quando não valoriza como eu.
Aqui acorda a bióloga. Mudamos de provérbio. É deus dá nozes a quem não tem dentes. Pobres almas incapazes de apreciar, de disfrutar, o que deus lhes atira.
Mas o porco tem dentes. A sua pestilência e fedor resulta de não distinguir a qualidade dos alimentos que ingere. Come de tudo. É um sobrevivente. Mas vil é o ser que não consegue valorizar, preso na lama para todo o sempre.
Não sou porca. Sei lá a quê que os porcos dão valor. Infelizmente, o que sei é que os meus porcos não dão valor às mesmas coisas que eu.
É neste momento que me torno ostra. Engulo um objeto irritante e tenho de o neutralizar em múltiplas camadas de nácar. Enovelo as emoções negativas: fico ressabiada, ressentida, orgulhosa, ferida, magoada, massacrada, perplexa e em fúria. Construo uma casa para as minhas irritações e quando está pronta e não a quero carregar mais, cuspo-a.
É aqui que sei que o trabalho não estava completo. Seria mais belo um suave desprendimento em vez dum “tomem lá, seus peixes porcos”.
Mas ninguém é perfeito. Até as pérolas podem ser feias. O que sei é que deus não fica com elas. Há mais do que porcos neste solo sagrado. Se não distingo os porcos de outros animais, sou como eles, incapaz de apreciar. Pérolas a mim.