— Caríssima Morticia, é um enorme prazer recebê-la aqui na Rádio Osso. Infelizmente, devido a questões financeiras a que o nosso diretor está amarrado, só podemos apresentar esta entrevista em jornal. Peço desculpa por não escutarem a Rainha Gótica e a sua voz maravilhosa. Terão de se deleitar com as suas palavras.
— Ora essa, acredito que o terror pode invadir a alma através de inúmeros sentidos.
— Quando começou a dedicar-se às artes negras? E já agora, o que é uma arte negra?
— Entendo por negro a negação de algo a que me dedico, neste caso, a vida.
— É, então, uma bióloga negra? É por isso que é Morticia?
— Na verdade, o nome quer dizer “a que mortifica”. Há coisas piores do que a morte. Quero que vejam a vida e a morte a cores, e não a preto e branco. Comecemos por… Uma pedra.
— Muitos organismos parecem pedras, à primeira vista.
— Esse é o primeiro desafio. Como sabe se uma pedra está ou não viva?
— Bem, além de bater-lhe com um pau (risos) para ver se mexe, observava-a para ver se respira, se tem humidade ou visco. O visco e muco são a marca dos seres vivos.
— A Maria confia demasiado nos sentidos. Mas tocou num ponto importante, a que chamo a arrogância do carbono. A visão de que somos mais que pedras porque respiramos.
— A Morticia fala do chauvinismo do carbono de Carl Sagan, e do surgimento de formas de vida baseadas em silício?
— Maria, eu falo de nos acharmos a nós, “os vivos” (e faz o gesto das aspas com os dedos), superiores aos minerais porque, ao contrário deles, oscilamos entre estados. E cremos ter uma identidade.
— Depois tem de me dizer como arranja tempo para oscilar tanto, sendo mãe de quatro filhos.
— Terei muito gosto. Se me permite continuar, há estudiosos que propõem que a vida cria as próprias regras de atração e repulsa. Estas operam num espaço de interação, sem precisar de uma membrana para distinguir o dentro e o fora. A vida não é uma cortiça vazia em que cada buraco é uma cela de monge, por mais que eu goste de imaginar monges em celas. Mesmo sem paredes, a vida cria um lugar a que chamo self. Se tivéssemos de traduzir, diria ser.
— Essa é a unidade da vida?
— Quem sabe, mas o interessante são as propriedades que conferimos a esse lugar. A vida vê-se a si mesma como distinta, superior ao mundo dos minerais.
— Vamos especular como uma célula se vê a si mesma.
— Querida Maria, vamos mais longe. A vida obriga, por expectativa moral, a célula a ver-se como separada das outras, enquanto sente um desejo enorme de se fundir com a sua vizinha. Maria, sei que confia demasiado nas pessoas. Mas aviso-a, a simbiose não é como pensa.
— Tenho-me esforçado por ver o lado negro das coisas…
— Eu sei, querida. E sei que acompanha os tempos, e que já não entende a simbiose apenas como mutualismo, mas como uma relação íntima, em que as partes envolvidas não são equivalentes nem têm o mesmo poder de influência sobre as outras. As simbioses podem ser negras, e haver abusos, até ao ponto da escravatura.
— Em que difere isso da ingestão, da predação?
— A ingestão implica a dissolução total do ser. O eu, o self, desaparece. Vamos considerar por um momento, que esse seria o zero da vida, a morte total.
— Morte total — pode haver outra?
— Claro. A morte precisa de ser finalizada. Antes de chegarmos aos mortos-vivos, aos vírus e aos vampiros, há um sem número de pequenas mortes que acontecem sem darmos conta. Morre-se por perda de autonomia, objetificação ou falhas de representação.
— O que entende por objetificação? A criação da mulher-objeto?
— Permita-me clarificar. A objetificação é o processo de transformar a mulher numa máquina de lavar — um objeto, cujo propósito é definido externamente. Pode encontrar este discurso na extrema-direita misógina, para quem a mulher, deixada a si mesma, é incapaz de definir os seus propósitos. Mas a mulher, para si mesma, não é um objeto. Ela tem um propósito, que o homem considera que é servi-lo.
— É aí que entra o vidro moído na sopa.
— Sinto orgulho nessas mulheres que toma como referência. Sim, a mulher poderá esconder o seu propósito por se encontrar subalternizada. De qualquer forma, aos olhos do homem, ela é silenciosa — é-lhe impossível saber se está alguém em casa, ou não.
— Parece um filme de Hitchcock.
— Depende da perspetiva. A vida representa e é representada. Duma perspetiva exterior, não podemos saber se um objeto está vivo ou não. A vida só pode ser apreciada subjetivamente. Para terceiros, as nossas ações são indistinguíveis das de chatbots, robôs, ou atores. Sabia que existem pessoas aterrorizadas com a ideia de que os seus entes queridos sejam substituídos por clones?
— Mais filmes de terror.
— Sim, um terror espectral, diferente de deparar com um inimigo feito de carne. Não se trata do terror de um monstro deformado, praga ou contágio. Trata-se do terror de encarar algo que não joga com as nossas regras. Que nos pode manipular, sem que saibamos neutralizá-lo.
— Diga-me, por favor, que vamos falar sobre zombies.
— Porque não? Comecemos pelas formigas zombies. São manipuladas por um fungo que determina a altura exata do solo florestal a que devem subir, 25 cm. O fungo é um pirata que desvia a formiga dos seus propósitos, transformando-a num veículo para os seus fins, um animal de carga. Mas a formiga sofre com isso? Ou já não está lá para o perceber?
— Recapitulando: os zombies resultam da dualidade mente-corpo, aparecem quando “não está ninguém em casa” para representar os signos através dos quais se percebe o mundo. Ficamos então com uma máquina, um pedaço de muco, um visco operacional com prazo de validade.
— Exatamente. Essa é a zumbificação da vida — amputada da capacidade de fazer sentido do mundo.
— E os vampiros?
— Maria, chegou aos meus favoritos. Encantadores. Podemos vê-los como predadores humanos que nos seduzem, mas que não podem viver sem nós (não acha romântico?), ou vê-los como mortos-vivos que predam, não o sangue das vítimas, mas a alma, porque não têm nenhuma.
— Acredita que, de fora, alguém possa observar se uma relação é mutualista ou parasítica?
— E a Maria, acredita? Claro que há critérios mais ou menos objetivos — o fungo faz crescer um cogumelo na cabeça da formiga. Não parece ser muito saudável. Vai morrer e ficar uma papa. Mas o que sente a formiga? Sabe que o Toxoplasma gondii, quando manipula o cérebro dos ratos, fá-los ter atração sexual pelos gatos? O que sente o rato ao ser comido? Será que vê a sua morte como um propósito de vida, um servo que transporta deus?
— Onde penso que estamos as duas de acordo, é que não duvidamos, por um segundo, que uma formiga tem propósitos e que não é uma máquina de lavar.
— Claro que sim, Maria. É muito menos aborrecido ver o mundo animado.
Maria de Assunção com Morticia, em coro: — Antes a morte que a vida em pastel.