Poetas na praia
Eram 15 horas em alguns relógios
quando senti uma explosão na cabeça
Meia cegueira
Algumas flores
a rebentação de uma onda na areia
— aquela espuma branca na memória
e uma ideia poética
sei lá
uma espécie de educação sentimental :
colar versos célebres
de poetas celebrados
com e sem qualidade
que já há poetas sem qualidade
muito celebrados
e dizer à Amelia
por exemplo
que a poesia
Amelia
é parte integrante
fundamental
da Ordem Imaginada
E que onde o poeta diz
“A questão uma vez mais é recusar”
Ele quer dizer obedecer
Onde diz
“Fica mais um pouco.”
Quer dizer “desaparece”
Onde diz
“chamam à fraude boa fortuna”
Quer dizer “conforma-te com ela”:
Os poetas
vistos da praia
são como a amada de Yeats
Eles eles eles
cagam
Essas e não outras
O panamá tão caro está agora roto em vários sítios, mas a aba continua a cumprir a função primordial de um chapéu. As jeans pretas, com poucos anos, poídas em vários sítios, abriram rasgões indisfarçáveis. Mas uso-as mesmo assim, sem que isso pareça atrair a atenção de alguém. Gosto desta praia e deste tempo. Sinto-me como Felix Phillips, o homem de teatro que encena a Tempestade para a penitenciária de Fletcher, no Canadá, embora não tenha nenhuma vingança em mente. Crianças brincam na areia debaixo da vigilância dos avós, um grupo de adolescentes tardios, com vistosas camisolas da Escola de Desportos Náuticos e pranchas de surf debaixo do braço, dirige-se para a rebentação. Alguns casais jacentes parecem ter sucumbido ao sol. Uma mulher olha nervosamente para o mar. Quando mergulho nas ondas, as águas são escuras, com areias que brilham como uma suspensão de prata. Vêm-me à cabeça cheiros e sensações da infância atlântica, o sabor puro do limão dos gelados da Casa Tamariz, o cheiro da Ambre Solaire na pele privada das raparigas, a água salgada do mar das 14 horas, antes do banimento do sol zenital, a preencher o concavo das axilas e a entrar, hipertónica, pela nossa pele semi-permeável. E palavras como estouvado e buliçoso, temerário e destemido. Essas e não outras. E como Félix, que estava quase sempre acompanhado de Miranda, a sua filha morta aos três anos, também eu estou acompanhado, quando mergulho e furo as ondas, como se os movimentos reflexos do corpo àquela imensa água iluminassem ali a minha gente ausente. Chomsky de partida para Orléans, os meus poetas das praias, da Consolação a Porto Pim, das Praias da Terceira, as miúdas na Casa da Mata, o rapaz num atl de férias, os irmãos reunidos.
Extinção
Quando o mais novo dos meus filhos conheceu a praia
gatinhou na direção do mar.
Entrava na água sem hesitar. Eu ia pescá-lo
e ele largava búzios pequeninos
perfeitos de concha intacta translúcidos
listrados de superfície aveludada.
Disseram que se chamavam beijinhos.
Guardámos os mais bonitos
isto é todos
e todos desapareceram com as casas.
Hoje sem querer voltei a este lugar. Irreconhecível
os acessos urbanizados bares na praia
um pequeno espaço para quem o alugar.
O mar parece o mesmo
trazendo pequenos seixos à linha de rebentação.
Mergulhei as mãos na água procurei
na areia percorri com os olhos o caminho na rocha
que devia levar à casa da falésia
desse verão. Há conchas bonitas
seixos coloridos. Já não há beijinhos.
Nada que se pareça com beijinhos.
O desejo dos homens em geral
Alexander Kluge escreve que num encontro com Martin Walser este lhe pergunta porque razão escreve histórias. Esta pergunta parece-lhe insinuar que ele poderia abster-se de escrever histórias, um descaramento. E Kluge resolve falar claro e revelar que, afinal, tudo o que escreve ” tem por fim o restabelecimento da paz entre os pais, a anulação do divórcio.“ Singular revelação.
Walser é o primeiro a espantar-se:
“- Quer dizer que todo o ímpeto do Iluminismo, pelo qual é conhecido, se baseia num motivo privado?
– E mais do que isso, num motivo desesperado.
– Se bem entendo o que diz, a sua mãe duvidava que o seu pai a desejasse o suficiente, ou duvidava “do desejo dos homens em geral?”
Alexander Kluge em A Crónica dos Sentimentos, BCF Editores, Lisboa 2019
Ocorre a crase
Diante da palavra feminina
Clara oculta
Que não repele o artigo
Ocorre a crase
(Novo dicionário de dúvidas, Evanildo Bechara)
Outro poema na rebentação
Na maré baixa
contra o sol poente
na linha da rebentação
quase todos rapazes
somos algumas sombras
recolhendo pedras
A minha mãe costumava
fazer esta recolha
e descobrir pedras preciosas onde
eu só via a opacidade
das areias sob a espuma do mar
Eu acreditava que cada uma
das pedras recolhida
existira já na vida dela
Que a minha mãe fazia
uma recuperação
e que
sem esforço
pelo simples facto de estar ali
me seria revelado o seu martírio
resgatado pelo tempo novo
que eu só por nascer
inaugurara
Agora guiado por recordações
como estas
e por sombras ruídos
sensações
recolho pedras pequeninas
por nenhum motivo consciente
sem nenhum critério
nem lindas nem perfeitas
apenas pedras trazidas pelo mar
Os rapazes olham para a areia
à procura de seixos
eu olho para os rapazes
tentando descobrir
quem sou