Número 36

30 de Dezembro de 2023

O JOGO DAS NUVENS

Relação

HENRIQUE LOFF SILVA

Craigie Horsfield

Above the Bay of Naples from Via Partenope, Naples. September 2008, 2012

Tapeçaria (lã, algodão, seda, fibra sintética), 500 x 950 cm


Craigie Horsfield nasceu em 1949 na cidade de Cambridge, Inglaterra. Duas décadas mais tarde, em Londres, inicia os seus estudos artísticos na Saint Martin’s School of Art. Chega à fotografia, portanto, sob os auspícios da pintura. Entre 1972 e 1979 encontra-se na Polónia, uma vez que, de acordo com as suas convicções políticas, pretende aproximar-se da realidade de um país socialista. Datam desse período invulgares retratos a preto e branco, imagens impressas somente nos finais da década de oitenta e graças às quais adquire um primeiro reconhecimento. Após esses anos iniciáticos em Cracóvia, Horsfield tem vivido e trabalhado em Londres, Barcelona, Nápoles, Madrid e Nova York.

A obra de Craigie Horsfield é de facto invulgar, as suas fotografias são verdadeiramente admiráveis. Um primeiro olhar distingue nelas um encanto sombrio, uma beleza austera. Evidenciam uma espécie de atmosfera cénica. São imagens densas, obscurecidas, onde imperam sombras suspeitas, vazios que parecem aprofundar a espessura do visível. Talvez se possa falar de um chiaroscuro particular a Horsfield, de um jogo característico entre a importância da obscuridade e o que dela acaba por sobressair.

Valerá a pena referir alguns aspectos do seu trabalho. Revela-se sempre, ao longo da sua obra, a importância da relação entre o individual e o colectivo. Horsfield, pelo menos desde 1993, tem desenvolvido «projectos sociais» que nascem da proximidade com certas comunidades urbanas, do envolvimento directo das pessoas, do diálogo com curadores, economistas ou antropólogos. Em Barcelona, por exemplo, a participação dos habitantes fotografados por Horsfield verificou-se na discussão das memórias e experiências de cada um e em constantes debates a respeito da cidade. Há pois a intenção de se sublinhar o papel do indivíduo na história e na cultura de um lugar, enquanto elemento nunca desligado de uma comunidade. Neste vínculo entre o individual e o colectivo, a ideia de relação é fundamental no seu trabalho.

O conceito de relação refere-se às conexões entre pessoas, ao modo como nos colocamos face aos outros, e não a uma negociação entre o individual e o mundo. É afastada, portanto, uma concepção da individualidade em isolamento. «Relation», escreve Horsfield, «determines community, and individuality is inextricably bound to relation and not to separation or alienation: relation is being, it is not a network of interconnecting lines». É na relação que convocamos as nossas experiências e nos situamos nas experiências dos outros. Para Horsfield, a arte terá de passar por esta acção, por este entre que acontece colectivamente. Se falha a relação acabamos por nos deparar com o que menos interessa — «information, document or witness, unrealised, inert, sterile matter». Este entre é o nosso presente, «it is being». E é neste presente que nos apercebemos da continuidade entre o individual, o outro e o mundo. Para Horsfield a arte terá de admitir este presente, terá de passar pelo  diálogo, pela comunicação, pelo reconhecimento da individualidade com os outros. A arte terá de ocorrer na relação, isto é, em algo que se pensa, se constrói e se experiencia em conjunto.

Embora Horsfield inclua desenhos, peças fílmicas e instalações sonoras nos seus projectos, é sem dúvida a fotografia que neles se evidencia. Tratam-se de imagens criteriosa e obsessivamente produzidas. Verifica-se, por um lado, um hiato de vários anos entre a captação da imagem e o momento da impressão. Depois há sempre um extremo cuidado no processo de produção, dada a monumentalidade das obras, o apuramento das técnicas de impressão ou a especificidade dos materiais usados. E uma vez impressas tornam-se imagens únicas, irrepetíveis, já que o autor determina essa acção extrema que consiste na destruição do negativo.

Ora não podemos deixar de nos interrogar acerca da convivência entre a suprema exclusividade das suas obras e o suporte conceptual no qual se baseiam. No caso presente, por exemplo, como se harmoniza a ideia de relação, a importância entre o individual e o colectivo, e a extraordinária beleza desta colossal tapeçaria? Pode referir-se, com efeito, o paralelismo entre a urdidura da tapeçaria e a ideia de relação, tão cara a Horsfield, no facto de ser justamente na relação entre os seus fios, em que cada um é igualmente importante, que se esclarece a unidade e o significado do resultado final. Mas esta parece ser uma associação forçada. Não podemos esquecer o carácter privativo, solene, quase luxuoso de uma tapeçaria. E como não pensar nesta «Baía de Nápoles» sem lembrar as atmosferas românticas de Turner ou as tempestades de Aivazovsky? Não é possível ignorar as conexões entre as obras de Horsfield e a história da pintura. Reconhecemos nelas a Renascença italiana e a escola flamenga. Nas fotografias realizadas em Madrid não podemos esquecer Velázquez ou Goya.

Sabemos que os retratos de Craigie Horsfield surgiram de um exercício colectivo, num «presente relacional», sabemos que se deseja explorar a tensão entre a individualidade do retratado e a sua inescapável relação com os outros, e, no entanto, somos irremediavelmente reconduzidos à pintura, precisamente a tudo aquilo que nela é exclusivo, monumental, conservador, e que dificilmente desligamos da tradição, do génio e da soberania do autor. Haverá uma contradição entre o que está implícito na assombrosa elegância das suas fotografias e os pressupostos conceptuais dos seus projectos? Como conciliar as preocupações sociais de um artista com a natureza quase épica do seu trabalho plástico, com a imensa ambição que nele reside?

E este aspecto aparentemente paradoxal em nada diminui a sua obra. Craigie Horsfield lapida demoradamente as suas pedras preciosas e todas elas não deixam de ser ilusões, disfarces, reflexos, imagens de infindas imagens.