Número 19

5 de Fevereiro de 2022

A BETONEIRA DE BENCANTA

Relato do adepto enquanto trânsfuga ou traidor

LUÍS JANUÁRIO

Fausto,
 

Escrevo-te isto em poucas palavras, espero. Não faria sentido usar muitas palavras para te dizer que não vou escrever. Que não posso escrever. Que não encontro palavras para te explicar.

No fim de semana passado fui votar. Mas na véspera assisti a um jogo de futebol. Já assisti a jogos destes no meio de multidões. Ou entre amigos. Ou em família. Já gostei de multidões. Já tive a ilusão de que partilhava com pessoas reais, cujo brado ouvia, uma visão do jogo, uma apreciação dos intervenientes, uma vontade de vitória sobre o adversário. Hoje, as pessoas dispersaram-se, desapareceram. Só partilho esta paixão com poucas, jovens ou muito jovens. Neste jogo, a que me refiro, o amigo com quem podia compartilhar alguma emoção pelo decorrer da partida, estava impedido de assistir, castigado pelos pais por se ter portado mal.

Estava, pois, com pessoas apenas interessadas no resultado final. Ou seja, praticamente sozinho. Habitualmente, as peripécias do jogo têm para mim tal intensidade que apagam qualquer reflexão. Vivo aquele momento como outros animais, de quem se diz não terem futuro, apenas o momento presente. A introdução do VAR alterou muito as condições de participação no jogo, mesmo como espectador. Introduzir uma pausa no calor das jogadas mais importantes, acreditar que podem ser vistas de outras maneiras, de outros ângulos, modifica muito o comportamento das multidões. Pode-se discordar da decisão do VAR. Mas é como se nos tornássemos negacionistas. Ou discutíssemos as leis do jogo. Agora há linhas amarelas no futebol. Sempre houve, claro. Mas dependiam do ponto de vista dos árbitros auxiliares ou do principal, juiz final. Agora as linhas podem ser traçadas. São virtuais. Mas a distinção entre virtual e real esbateu-se notavelmente. Um dia destes, à saída da padaria, fui surpreendido por um estrondo. Um carro, ao executar uma manobra para sair de um estacionamento, embatera noutro. A condutora tinha recuado para a posição inicial e saía do carro alvoroçada. Viu-me e exclamou: — As linhas amarelas não mostravam colisão. E não alarmaram. — Depois, abeirou-se do outro carro e concluiu que não havia mossas. Olhou-me. Eu encolhi os ombros e ela voltou ao carro e abandonou o parque. Fiquei uns segundos a ver o para lamas amolgado do outro carro, as marcas da tinta branca na lata. Era um carro antigo, de pensionista ou reformado, alguém que não sabe da existência das linhas amarelas e que as linhas talvez não reconheçam.

No jogo, agora é assim. Há uns poucos que não conhecem as linhas, não acreditam nas linhas ou não aceitam ainda a autoridade do VAR. Mas são poucos e provavelmente velhos. O VAR é geralmente invisível, lento e sabedor. O VAR para a realidade. O VAR é o realizador que revê os planos, os jogadores, as suas movimentações congeladas, as suas intenções. Mas não manda repetir as jogadas. Julga soberanamente. E faz seguir o jogo.

Estas alterações tecnológicas na arbitragem mudaram profundamente o comportamento dos jogadores, o julgamento dos árbitros, no campo, e a forma de ver o jogo, em direto ou na televisão. Mesmo os comentadores, face às jogadas mais complicadas, são agora agnósticos envergonhados até à decisão final do VAR, para em seguida se conformarem com ela.

Mas a alteração mais profunda na forma de ver o jogo não vem deste tempo de reflexão que agora pontua a emoção do jogo, mas do que se passa em mim, enquanto adepto.

Acentuou-se infinitamente um desvio da minha personalidade. Não me consigo identificar com a minha equipa, sobretudo quando, nos meus critérios, está a jogar mal. O jogo começou com um golo dos meus. Um belo golo, com interferência de três jogadores e uma inspirada e possante finalização. Tive toda a emoção estética. Mas depois, ao longo do jogo, a minha simpatia ia declinando e acabei a festejar o golo do empate. Envergonhado. Progressivamente envergonhado e triste.

Não me passa pela cabeça mudar a minha afeição. A minha capacidade de trânsfuga é limitada pela história, pelas cores, pelas bandeiras, pelos gritos de guerra, pelos cânticos e pelo ingénuo clubismo das crianças. Acho saudável ser adepto, assim. Desconhecendo os corpos gerentes, e vibrando com os jogadores. Mas ao longo do jogo comprovava dolorosamente que eu já não era dali. Estava a ver um derby e não estava com a minha equipa. Como dizia dos dissidentes um grande treinador de antigamente, que anunciou vitórias e explicou magistralmente derrotas: “o coração dele já não está com o partido”. Não se tratava de admirar o treinador e alguns jogadores adversários. Sempre me aconteceu, anteriormente, e isso não era limitativo do meu sentimento de pertença. Estava a perder, e muito triste com a derrota. Mas o meu coração já não estava ali. Coração, cansado coração, carregado de derrotas e paixões.

Achas que se pode escrever depois disto?