“O pai meu esteve mobilizado na Guiné-Bissau. Diria que ele trouxe a guerra dentro dele e numa pequena mala que escondia na parte de cima do armário do seu quarto. Uma mala à qual eu tentei sempre aceder, mas esta não se abriu. Nem o meu pai”. “Cartas da Guerra (61-74)”, o mais recente espetáculo de Ricardo Correia, nasce com uma carta que ele, como filho, escreve no tempo presente, 2023, ao seu pai em 1972. Como tantas outras peças que escreveu, também esta nasce para combater um longo silêncio, para escancarar as feridas – as nossas e de outras gerações.
Nascido há 44 anos numa terra pequena em Barcelinhos, sob a proteção da avó materna, Ricardo Correia começou a fazer teatro na adolescência. Primeiro no clube de teatro da secundária de Barcelos, depois, na companhia de teatro amadora A Capoeira, e no Teatro Universitário do Minho, antes de começar como profissional em 2001 no Porto no Teatro Nacional São João, onde fez o seu primeiro espetáculo.
Em 2014 concebeu “O meu país é o que o mar não quer”, peça de teatro documental nasceu da estadia de Ricardo Correia em Londres, em 2013, enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e foi construído a partir do seu relato pessoal e de testemunhos de emigrantes portugueses qualificados que foram “obrigados” a sair de Portugal durante os anos de incerteza da Troika.
“Foi um espetáculo que me levou a resignificar a ideia de criador, numa complementaridade entre a interpretação, encenação e criação dramatúrgica”, recorda.
Diretor artístico da Casa da Esquina, em Coimbra, o encenador, dramaturgo e professor já trabalhou em mais de quarenta espetáculos como ator com vários encenadores e estruturas. Respira teatro como quem respira vida. “Considero a arte, e o teatro um espaço de resistência à cultura da banalidade. Um espaço de escolhas. Tudo o que faz parte do teatro serve como um radar do mundo. Para o perscrutar. Para revelar o belo e o grotesco, o esplendor e a negritude. É também um meio de encantar. De contar histórias. De nos chocar, como um banho de água fria. Serve para inventar algo novo. Claro, que a arte que faço, se pode afirmar socialmente engajada. Como um sensor que mede os níveis de glicémia do mundo. As baixas e as altas. O teatro como um registo do nosso tempo. Um testemunho dos acontecimentos. Um registo que documenta a ação do humano e questiona o curso da história e das nossas histórias. A minha, a tua. Já não as histórias épicas, mas as histórias de cada um de nós. As micronarrativas. A batida do coração da sociedade. Pode servir para se fazer transmissão de memórias. Ou só para estar com outros. É um espaço de partilha. Um tempo entre quem faz e quem vê. Um tempo fora do tempo. Uma suspensão na aceleração da vida”.
Mas o teatro é também uma forma de exorcizar velhos demónios, como em “Cartas da Guerra (61-74)”, que estreia a 25 de março no Cineteatro de Estarreja e chega nos dias 30 e 31 a Coimbra (Teatro Académico Gil Vicente). Uma peça apoiada na investigação de Joana Pontes sobre 13 anos de correspondência entre militares mobilizados para a Guerra Colonial e no testemunho de seus familiares, que revela o que ficou nas entrelinhas e escapou à censura do regime fascista: “as lacunas, subjetividades e silêncios de uma guerra que continua guardada dentro de cada um.”