Uma voz de mulher parece virada para a parte mais desinteressante do mundo, enquanto a de um homem, com falsa solenidade de mansplaining, lhe explica as posições do sling. Ela, em tom zombeteiro, inicia a conversa sobre o andarilho e ele remata como se recitasse um folheto de propaganda. Prazenteira, muda o tema pronunciando robe com pinças cautelosas e chambre com a ponta dos lábios esticados; ele repara no vestido e pergunta-lhe se usa robe; silêncio, constrangimento; ele mexe-se, pigarreia, duvida sobre o código deontológico dos e das jornalistas.
Ela, Madalena Zuarte, interroga-se porque terá de continuar as entrevistas com ele, Enrique Pichón-Rivière, notável psicanalista da América do Sul e admirador de Alejandra Pizarnik. Contraditoriamente ouvem-se ruídos intraduzíveis sobre claustrofobia e egodistonia dentro do closet. Insinuam-se assédios e cortejamentos. Next to him, a entrevistadora quer saber como as crianças vivem a noite; a voz do doutor ilumina-se ao entrar na obscuridade; tomando fôlego, detém-se aguardando a reação dela, que não surge. Percebe-se que faz sinais com os dedos e, trocista, pergunta: “Os poetas não dormem, é isso?”. “Eu ouço a noite, Madalena. Sou como as mulheres. Vejo os homens a adormecer. Vejo o sono dos bebés perto das mães, o sono dos mais velhos no quarto ao lado”. Entretanto delira com o que para muitos homens é uma estranheza: o momento em que as mamas das mulheres atingem o grau V na escala de Tanner, esse ponto que ocorre apenas na lactação. Ela tenta a todo o custo criar uma âncora para o ouvinte, interessando-se pelo amor romântico. “Convém que a amamentação não se eternize”, responde o doutor prosseguindo o delírio no Parque Verde do Mondego. Madalena traz o verso de Ruy Belo “era afinal o verão a única estação”; notando a falta de entusiasmo, acha-o snob e, afogueada, interpela-o sobre a democratização das praias. Pichón recorre a Montalbán ilustrando como as famílias dos populares foram substituídas por turistas em veraneio e, com Flaubert envergonhado, critica a massificação e os parques temáticos. Ligeiramente irritada, ela acresce as disneylandias como museus no inverno. Voltando à luz, indaga sobre o gosto das crianças pelo verão; sentindo-o resistente, estica convictamente a corda: “A sede, o suor e os insetos vibrantes?! Também gosto. Tudo isso transpira a erotismo”. O técnico de som da Rádio Osso distrai-se e a canção Estate de João Gilberto não sai. Inesperadamente ouve-se Odio l’Estate na voz de Roberta Gambarini.
Passaram quinze dias e convém que alguém trema. Madalena recorda então que o notável psicanalista conhecera Alejandra Pizarnik com vinte e dois anos, no bar El Temple em Buenos Aires, e lê o poema La Celeste Silenciosa al Borde del Pantano. Falam do trágico fim, das bonecas estropiadas e maquilhadas, dos 50 comprimidos de Seconal e da chegada triunfal das benzodiazepinas. “O senhor, como seu médico, acredita que Alejandra enlouqueceu por desistir da poesia?”. Resposta precisa: “A poesia não interessa a ninguém. Foi o que ela disse. Mas a realidade desmentiu-a”. E continua: “A poeta morre quando sente que as suas palavras não criam uma nova realidade. Pero el silencio es cierto. Por esso escribo. Estoy sola y escribo. No, no estoy sola. Hay alguien aquí qui triembla”. Ao som de Piazzolla, os ouvintes estremecem. Os leitores também.
Duas semanas depois uma ouvinte escreve-lhes: “Essa Pizarnik telefonava às 3 horas da manhã a Silvina Ocampo e acabava a recriminá-la por não querer suicidar-se a meias”. O doutor retorquiu: “Não havia telemóveis. Telefonar assim às três da manhã, é pouco plausível”. A entrevistadora pensa nas crianças, quer saber em que altura da vida adquirem uma reputação. Ele afasta-se das infâncias e confessa: “Vivi muito tempo enclausurado na minha reputação. Até que não aguentei mais. Por isso estou aqui, consigo. Quero ter má reputação”. Ouvem-se as gargalhadas de Madalena misturadas com La mauvaise reputation de Brassens.
Radiante, após as férias, Madalena Z. surpreende-se com as unhas do homúnculo de Penfield e apercebe-se do olhar de Enrique nos seus lushly feet.
Por fim, despede-se do vasto auditório da Rádio Osso e do nosso dr. Pichón R.
Desligado o microfone, desabafa: “Esmagou, doutor. Não pensou nos seus ouvintes nem em mim. Impossível fazer psicanálise à Pizarnik e vender slings, andarilhos e berços às mamãs. Sabe o que penso, ao ouvi-lo? Este velho vai agonizar sem ter sabido ser um merdas prático”.