Número 17

8 de Janeiro de 2022

BOLSA DE VALORES

Salvatore

Hélio Barata

Fugiu. Ou melhor, voltou a fugir. Desta vez, fê-lo fisicamente, geograficamente. Ninguém sabe onde pára. Já vasculhámos tudo, não há pedra que não tenhamos levantado nem recanto que não revirássemos. Os amigos, os inimigos, as cidades, os campos, os caminhos. A paisagem tornou-se um mapa conhecido ao pormenor, cada pinha, cada marcação na estrada, os números de polícia. Deixou-nos isso, para já, um novo sentido de lugar, um conhecimento matemático do meio ambiente. As autoridades já foram informadas, mas não creio que façam algo. Não têm meios para procurar maiores e vacinados sem um historial que o justifique. E há coisas, esse historial, que não se pode contar às autoridades. Poder, pode, mas não deve, não são do seu foro, não serviria de nada a não ser espalhar os podres por aí. Os agentes da autoridade são pessoas como nós, só que menos elementares e mais agentes, uma particularidade que recomenda alguma reserva, mesmo às custas da eficiência. Sempre fugiu, afinal — aos deveres escolares, sociais, sentimentais, a alguns dos legais. Manteve-se do lado de dentro dos limites que separam a comunidade da proscrição, a comunhão da sedição. Os dois pés dentro, um pé dançante volta e meia de fora. Era a maneira de nos dizer, a maneira de se contar como outro enraivecido contra as convenções. Não gostava, mas ia fazendo o favor de ficar, precisava. O que importava é que ficava por cá ou, no mínimo, andava por aqui, era contactável, visível, mensajável, telefonável. Mesmo que não tivesse mais a oferecer que a sua presença, por vezes nem tanto, a sua existência, o seu charme, o descanso da vida. As suas vítimas, menos descansadas, também continuavam todas por aí, embora muitas já não andassem por aqui. Não era ele que ia, eram elas. Iam-se desvanecendo até já ninguém dar por que elas haviam sido até que um dia alguém reparava que já não eram. Nunca se tratou de mortes de natureza criminal, nada que valesse a pena contar às autoridades. Nem temos ideia se ele pensava, sofria, sonhava. Matava as saudades. Teria pesadelos? Afogava as hipotéticas mágoas nas contraordenações? Nunca disse, nunca ninguém lho perguntou. Mas desta vez desapareceu, ou não voltou a aparecer. Já decorreu muito tempo para que pareça coisa passageira, escapadinha de descanso ou marginalidade. Para onde terá ido, ninguém faz pequena ou grande ideia. Nutria um fascínio pelas luzes de Mumbai, a cidade branca, mas ninguém o imagina a ficar lá, a mudar-se, quanto muito a passar. E mesmo isso. Não seria sequer a cidade que o atraía, mas a ideia do seu anonimato, a sua improbabilidade, a humidade de um imenso corpo arrebatado pelo prazer. Os que deixou para trás não ficaram desvalidos, apenas intrigados, com uma bola de flippers a bater-lhes no interior da cabeça. Há de lhes passar. Também é verdade que os que deixou para trás sabem, de uma maneira ou de outra, que se ele fugiu, e sempre fugiu, é porque nunca pôde fazer outra coisa.