Apanharam um casal nos Açores a 800 m de profundidade e observaram pela primeira vez a fusão dum macho e duma fêmea numa espécie de peixes Ceratioidei.[1] Até então, tudo o que sabíamos destes peixes era através de mortos em frascos ou moribundos, porque se sabe que os peixes das profundezas não sobrevivem em cativeiro à superfície.[2] Não é só a pressão, é a temperatura e sabe-se lá que mais, mas tentam à mesma, nem que seja para encher mais um frasco.
A história é incrível. Numas poucas espécies de Ceratioidei, o macho crava os dentes na fêmea e a sua boca dissolve-se. Parte da fêmea projeta-se garganta do macho abaixo como se fosse uma teta. Ela alimenta-o e ele metamorfoseia-se num enorme testículo que continua a respirar e a mijar. E é basicamente isto. Uma vez popularizada a história nos media, e sem nenhum Ceratioidei disponível para contar outra versão dos acontecimentos, o festim começa.
Abundam relatos de empatia, ora com os machos ora com as fêmeas, regra geral enquadrados pela sua triste condição de amor tóxico. Os machos são vistos como stay-in boyfriends,[3] parasitas sexuais,[4] seres que “perderam a sua independência” por amor, ou machos que “pescam” a fêmea. Nos relatos mais infantis, as fêmeas são as autónomas que caçam, com vários parceiros sexuais — como a fusão pode acontecer mais que uma vez, as fêmeas podem acumular múltiplos testículos nas suas tetas – “well done females.”[5]
Estes relatos mediáticos e a personificação habitual que se segue chega a pontos ridículos, que ficam tão mais ridículos quanto mais sérias são as pretensões dos estudos de acalmar a perplexidade geral e responder à pergunta “mas porquê?”
A resposta habitual da maioria dos cientistas é “porque tem de ser.” Trata-se dum caso de “economia das profundezas”, onde há pouca comida e a população é escassa, pobres machos que morrem virgens, só 1% é que se safa,[6] por isso é que as boas Ceratioidei andam com uma luzinha na cabeça estilo pirilampo do inferno (como se a história dos pirilampos fosse limpinha e fora duma violência X-rated extrema) para os atrair, etc., etc., etc.
Em primeiro lugar, claro que não tinha de ser e não é, só é assim para algumas espécies e não para todas. Digamos que foi uma estratégia que funcionou, entre muitas outras estratégias que também vão funcionando. Em segundo lugar, em vez de escrever contra a personificação (deixo que os relatos falem por si mesmos), vou escrever outras personificações.
As e os Ceratioidei começam a sua vida a flutuar no oceano profundo, livres, ovos protegidos por uma goma numa tira com vários metros. Flutuam até à superfície onde há mais comida e vivem alegremente uma vida de larvas e, quem sabe, de convívio salutar e não-tóxico entre machos e fêmeas. Mas quando chega a “adolescência”, separam-se as águas. Acabou-se o Erasmus. Começam a mergulhar para as profundezas. Porquê? Quem sabe? Peixes mortos em frascos não falam disto. Há de ser algum “instinto”. É nas profundezas, lá neste lugar onde não há nada, nesta economia de escassez, que aparentemente se sentem bem.
As fêmeas são especiais. Vivem através de bactérias simbióticas que se alojam nas suas barbatanas e dão luz. Luz que não conseguem ver porque são cegas. Detetam o movimento doutros peixes também através de bactérias, que são os seus olhos. Ninguém sabe muito bem de onde vêm estes simbiontes. E ninguém quer saber assim tanto duma fêmea com olhos de bactérias. Acrescento que não lhes retira nada à beleza.
Regra geral, estas peixes são consideradas aberrantes, assustadoras, monstros. Eu, na minha versão de frasco, também não espero estar no meu melhor. Mas o cientista que só viu peixes enfrascados, ao avistar o casal nas profundezas, descreve outra imagem: a de um ser com bigodes de gato, que na escuridão tateia o mundo.[7]
O macho, ora sacrifical da sua autonomia, ora parasita, parece tranquilo. Como diz Stephen Jay Gould[8], que macho que se preze não gostaria de passar o resto dos seus dias agarrado a uma teta que o provê, tendo os seus testículos como propósito de vida.
O melhor dos relatos de personificação do mundo vivo e dos seres que nos são “muito outros” é o que dizem sobre nós mesmos. É assim que devem ser lidos. Incluindo as preferências sexuais de machos descritores de mamas em U ou em V. Certamente que os peixes Ceratioidei falarão entre si sobre isso.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=XhsyZnVx2rQ
[2] https://www.livescience.com/amp/48885-rare-anglerfish-video-footage.html?fbclid=IwAR0bO88uEpkOz0bupoMVsJEAFywP8IJoDQL7Mn9-A833ee67_Eh7gM9FCNI
[3] https://www.nytimes.com/2020/07/30/science/anglerfish-immune-rejection.html
[4] https://scitechdaily.com/sexual-parasitism-deep-sea-anglerfish-evolved-a-new-type-of-immune-system-to-physically-fuse-with-their-mates/?fbclid=IwAR2F1nDyEK_WTd1BoOS1XtL4JAqn1Zj7uHYBt4jxBwNLVkuUty1aGjxPUzg
[5] https://www.youtube.com/watch?v=B0PQrkaZ5To
[6] https://www.wired.com/2013/11/absurd-creature-of-the-week-anglerfish/?fbclid=IwAR2WW-q598BXzT2KMA4Nl6zcaaIF9MfyG5oUZpJ7ZYdI01sf0uLE2NdKZX0
[7] https://www.washington.edu/news/2018/03/22/a-blind-date-in-the-deep-sea-first-ever-observations-of-a-living-anglerfish-a-female-with-her-tiny-mate-coupled-for-life/?fbclid=IwAR3Ginyu3e3_tpeCtbtBtFOJWgRndY3TsKzyd5HaEE5FQOHAFHQSHb4O9LI
[8] Gould, Stephen Jay. “Big fish, little fish.” Hen’s teeth and horse’s toes. New York: Norton (1983)