Uma jovem mãe sapiens que educa duas criaturas de 5 e 2 anos ouviu a mais velha, que domina sabiamente a língua portuguesa da Europa, dizer:
— Mãe, tenho uma impressão no bibi.
Bibi, uma deturpação de pipi, é a forma como algumas crias sapiens, falantes do português europeu do século XXI, designam a vulva.
A jovem mãe sapiens foi ver.
Um bicho da espécie Ascaris lumbricoides saía, ou entrava, da zona assim designada. Mesmo a tempo de ser retirada.
O Ascaris é um verme redondo que, no decurso do seu ciclo de vida, tem o seu habitat no intestino humano. Calcula-se que milhares de milhões de humanos tenham lombrigas silenciosas no seu interior.
A mãe pergunta-me (jovem mãe antropocénica):
— Como foi ali parar?
Uma cria sapiens de 12 meses brinca com uma gata recolhida há 5 anos. O modo da menina é negligência atenta. Está sentada, ainda não possui locomoção bípede, os seus movimentos são quase só dos braços e da cabeça. A gata move-se em torno dela, como um felino, em pontas, roça o dorso pelo dorso do lactente humano, estira-se, atira-se para o chão em decúbito dorsal, volta-se, ergue-se de novo, ondulando a coluna vertebral, aproxima-se obliquamente, bate-lhe com a pata na mão. A criança humana chora simbolicamente e queixa-se brevemente à mãe, levantando os olhos para ela, num plano mais elevado do seu campo visual.
Espécies sinantrópicas. Trocam sinalização dispendiosa interespécies. Bater, ignorar. A gata bate na mão da menina. A menina finge ignorar, mas reforça periodicamente o comportamento da outra.
O Ascaris lumbricoides vive no corpo do seu hospedeiro humano. Discretamente, enquanto larva rabditiforme. Ou mais ruidosamente, quando o juvenil trepa as vias respiratórias até ser engolido. A fêmea adulta da lombriga, prodigiosamente fértil, põe 200.000 ovos por dia, que são eliminados com as fezes, durante algum tempo.
Decorrem 2 a 3 meses desde a ingestão de ovos infeciosos até à oviposição pela fêmea Ascaris adulta. E 10 a 13 anos até que a fêmea humana, que nasce com 1-2 milhões de ovócitos, inicie a puberdade. Nessa altura só terá 300.000 ovos. Em cada ciclo menstrual, nos 30 a 40 anos da sua vida reprodutiva, vários folículos imaturos serão recrutados. Mas só um atingirá o estado de maturação que permitirá a ovulação e a fertilização.
Os vermes adultos do Ascaris vivem na luz do intestino humano. Vou contar outra vez. Quando os ovos fertilizados são ingeridos, as larvas da terceira geração (L3) tornam-se infeciosas e eclodem, invadem a mucosa intestinal e entram na circulação (migração portal das L3) até explodirem, literalmente, nos alvéolos pulmonares. As larvas crescem nos pulmões durante 10 a 14 dias sobem na árvore brônquica (migração brônquica das L3) até serem tossidas para a garganta e deglutidas. Este complexo processo de crescimento e circulação demora 2 a 3 meses. Uma vez de volta ao intestino os vermes adultos vivem até 2 anos. Verme dióico, as fêmeas adultas de Ascaris podem atingir os 40cm de comprimento e 6mm de diâmetro e os machos 20cm. Geralmente não causam sintomas. Mas podem provocar tosse na sua migração respiratória, desconforto abdominal e, em casos raros de infestação, podem agregar-se em colónias de razoáveis dimensões e causar oclusão intestinal. O ciclo de vida das lombrigas começa e acaba no solo. Intestino, sangue, pulmão, árvore brônquica, intestino. Ovo, larva, juvenil, adulto. Fezes, solo, mãos, boca, intestino, veia porta, circulação sistémica, coração, pulmão, brônquios, traqueia, garganta, intestino, solo.
Não sei porque é que uma fêmea perdida quis sair e voltar a entrar do corpo da menina.
A jovem mãe antropocénica perguntou, estupefacta:
— Nunca a deixamos brincar com terra. Nem temos quintal. Não anda na creche.
A jovem mãe antropocénica não é tão jovem assim. Há dez mil anos seria uma velha da tribo, uma avó pós menopausica, inteiramente dedicada aos juvenis do grupo. Há 300 anos, também.
A Ascaris de há 10.000 anos seria muito parecida com esta, a desta estória. Uma fêmea irrequieta no seu ciclo de vida. Os ovos, fertilizando o solo com as fezes humanas, voltam ao solo, de onde partiram.
Talvez o gato fosse menos fiável. Talvez se aproximasse menos há 10.000 anos. Desde a XXII dinastia que a deusa egípcia Bastet tinha face felina. Deusa ou próxima dos deuses, não sei. Os olhos do gato viram deus, voltou a dizer um místico contemporâneo.
O gato de Cheshire sorri.
Ele é que aponta o caminho certo a Alice. Proximidade e distância.
Cats de T.S. Eliot. Old Possum’s Book of Practical Cats.
Málek menciona um texto egípcio de interpretação de sonhos, explicando que se um homem sonhasse que via um grande gato, era um bom presságio, e significava que uma grande colheita estava próxima.
Os gatos, a gataria, tinham Manuel António Pina.