Theria, de therion, besta selvagem.
Theria, subclasse de mamíferos (seres que mamam) que inclui os placentários e os marsupiais. Exclui os monotremados, grupo de mamíferos que põe ovos.
Teriantropia, qualidade do teriantropo. Condição de quem acredita ter uma especial ligação com determinado animal, que não se identifica com a forma humana. Crença que envolve seres imaginários que combinam a forma humana com a de animais selvagens, como, por exemplo, lobisomens.
O ser humano, enquanto mamífero, é uma besta selvagem.
Selvagem, da selva ou próprio dela, selvático, inculto, que nasce e cresce sem cultura, sem cuidado especial, silvestre, bravo, que evita o convívio social, inabitado, ermo, feroz, rude, intratável, arisco, pessoa cruel ou malvada.
Selva, floresta densa, caracterizada pelo máximo desenvolvimento vegetal, tipicamente tropical. Mata inculta, matagal. Excesso de coisas, sobretudo emaranhadas, ambiente ou lugar confuso, onde abunda a competição e a rivalidade.
Assilvestrar, tornar(-se) silvestre ou selvagem, asselvajado ou feral. Animal doméstico que passa a sobreviver por sua conta na natureza.
Domesticação, ato ou efeito de domesticar(-se), amansar(-se), sujeitar(-se), de perder ou fazer perder o carácter selvagem, domação, dominação, adaptação a ambiente doméstico, tornar(-se) civilizado.
Civilizado, com civilização, que é próprio de uma sociedade evoluída, com instituições, técnicas, costumes e crenças, que revela desenvolvimento social, económico, cultural e/ou tecnológico, que age de modo urbano ou cortês, polido, em que há civilidade.
Dominação, ato ou efeito de dominar(-se), exercício de autoridade, domínio ou controlo sobre, império, soberania, supremacia, predomínio, o conjunto dos espíritos que formam o quarto coro da hierarquia dos anjos (anjos, arcanjos, potestades, dominações).
Therion, banda sueca de metal sinfónico, inspirada pelo álbum To mega therion de Celtic Frost. To Mega Therion, em grego, significa “para a grande besta”. Divindade de Thelema, consorte da Mulher Escarlate. Aleister Crowley, criador de Thelema, inspirou-se na Besta do Apocalipse, com quem se identificava em criança, porque a mãe o tratava por este nome.
Besta, animal irracional, quadrúpede, cavalgadura, pessoa bruta, estúpido, tolo, ignorante, besta de carga/tiro, animal utilizado no transporte de cargas, por tração ou a dorso.
Tenho de me tornar selvagem para entender o ser que mama?
Procuro assilvestrar o pensamento. Leio Como pensam as florestas, de Eduardo Kohn.
Na selva, as palavras falham-nos. É difícil até para Dante:
Ahi quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte . . .
Leio, e penso, que gramática, que regras. Santo Eduardo K., ajuda-me. Alma mater, nutre-me. THC, inspira-me.
Começo pela besta sem razão. Pela animalidade da carne desprovida de consciência. A carne, animada por um espírito. Mentira. Falo da carne viva, não da carne morta. Falo de flesh, não de meat. Living flesh and dead meat. O que as separa?
As bactérias que nos compõem são pedaços de carne – matéria, matter e mãe. A matéria que nos nutre, a nossa mãe. A mãe que se silencia para o desenvolvimento autónomo das crias. Mãe, mama.
Os pensamentos da carne são pensamentos selvagens, escapam à censura. Mas a carne tem de pensar no futuro. A carne tem de se manter viva.
A carne pensa. Toda a carne pensa. Em que pensa a carne?
A carne viva quer escapar à dor e perseguir o prazer. Ela não é um veículo, é o condutor. É através dela, dos seus sensores, que percebemos o mundo. É ela que acelera ou atrasa os pensamentos. Ela é eletroquímica, pulsante, dinâmica, amorosa, sensível.
Domesticar a carne é um terror extremo a que a Igreja Católica se dedicou, porque a carne desafia o seu poder.
Selvagens, pessoas em estado de natureza, seguindo os ensinamentos da dor, prazer e gozo, do descanso e do repouso, do mimo, amor e companhia.
Homo ferens, tetrapus, mutus e hirsutus, homem no seu estado natural de besta, sem interação com nenhum membro da sua espécie.
Um ser incontaminado.
Um ser não mamífero – que não depende da mãe para o nutrir, para o prover. Um ser criado por um peluche com biberão.
Fizeram estudos em macacos. Fascinaram-se pelas crianças abandonadas, das lições que podiam aprender com elas. Nunca as ouviram. Nunca as perceberam.
Crianças com animais como única companhia.
A superioridade da cultura sobre a matéria, matter e mãe.
A cultura é que nos faz humanos.
Ensinaram as criaturas selvagens a vestir-se, a rezar, ir à guerra, serem limpas.
A espécie humana reserva para si um quase-excecionalismo: faz símbolos. Somos a espécie que faz novas moléculas que representam a cultura e a carne.
O pensamento humano não é o único que existe, nem é melhor. É psicótico.
A besta irracional é a filha da arrogância de um ser que se acha com razão. Porquê? Que razão fiscaliza?
A razão é a polícia dos símbolos, da sua superioridade, e dos comedores de símbolos.
O pensamento vive além da carne, quando comunica. Vive o corpo do outro como seu, a tristeza do outro como a sua, a fartura do outro como a sua.
O pensamento vive além da carne, quando faz objetos.
O pensamento vive além da carne, quando é lido. O pensamento só, é um vírus descarnado, uma sequência de signos.
O pensamento sem corpo e alma é um fantasma, uma alma penada que não sabe que está morta.
A carne, estranhada do seu pensamento, morre.
A carne incorpora outros seres vivos na sua própria língua.
A carne pode viver no futuro.
A carne precisa de ser reparada para se reparar.
A carne pode usar espelhos para se ver a si mesma, mas não saberá como é vista por outros.
O pensamento morre quando é invisível.
A carne encara – devolve o olhar, produz interferências, sofre consequências.
O pensamento pode estar noutro lugar.
A vida é uma selva semiótica e simbiótica, unida e desunida por re-presentações de seres até que morre.
Viver na selva é habitar um espaço confuso e perigoso.
Para entrar na selva e sobreviver, tem de se enfrentar vivos e não-vivos.
Para entrar na selva, tem de se saber matar – outros seres e pensamentos, nossos e de outros.
Na selva, tem de se finalizar a morte.
Na selva, tem de haver um bestiário.
Na selva, o literal e o simbólico confundem-se.
Mortes, inúmeras mortes, por inúmeros cortes.
Que mãe pode nutrir os seus filhos na selva?
Ilustração de Mari Momo