Número 28

28 de Janeiro de 2023

CAIXA ALTA

Sofia, a cabeleireira que foi servente de pedreiros

ANDREIA M. SILVA


Não sabe de quem herdou o inconformismo. Mas foi graças a ele que, quando a pandemia a obrigou a fechar as portas do salão de cabeleireira, com contas por pagar, arregaçou as mangas e pôs mão à obra.

Quem olha para ela, bonita e luminosa, não imagina que foi servente de pedreiros. Mas o preconceito nunca colocou comida na mesa e Sofia não é mulher de se conformar.

Em 2020, quando o estado de emergência fechou o salão, a cabeleireira teve que encontrar uma alternativa. Havia duas opções: hipermercados ou construção civil, os únicos setores que continuavam em atividade e onde seria possível trabalhar sem necessidade de formação.

Numa primeira fase, conseguiu um part-time nas caixas do hipermercado do Coimbra Shopping, mas o que ganhava não chegava para as despesas. Um dia, viu um anúncio no Facebook a pedir serventes para obras. E Sofia, sem meias-medidas, disse que estava interessada. Do lado de lá, a resposta não tardou.

“Perguntaram-me o que é que eu sabia fazer”, conta. Na verdade, Sofia não sabia fazer nada, mas bastaria que lhe explicassem as tarefas uma única vez. Iria sem compromisso: se não gostassem do seu trabalho, não voltaria a incomodá-los.

E assim foi: às 6 e meia da manhã já estava na obra, numa moradia que estava a ser erguida nos Olivais. O primeiro dia foi duro, mas depressa aprendeu a fazer massa na betoneira e a transportá-la para junto dos pedreiros. A desmanchar paletes de blocos de cimento – “daqueles enormes – e de tijolos, que colocava, depois, em fileira. A tirar pregos de tábuas. A transportá-las para a carrinha. Foi assim durante dois meses – o tempo em que a pandemia suspendeu a vida de tantas pessoas. Quando o salão reabriu, ainda continuou a fazer serventia aos pedreiros todas as quartas-feiras (dia em que o cabeleireiro estava fechado). Os colegas das obras, mais velhos, sempre a admiraram e nunca houve um gesto ou uma palavra que indiciasse alguma falta de respeito.

Sofia, rebelde e corajosa, quase se cumpriu sozinha. A infância foi passada com o irmão mais velho e com os rapazes da aldeia. Anos mais tarde, depois da escola, enquanto as outras crianças se encontravam para brincar, ela ia para o infantário onde a mãe trabalhava como auxiliar de ação educativa. “Ia ajudá-la a ajudar a fazer a limpeza da creche. Regressávamos as duas a casa, já tarde”.

Quando estava quase a terminar o 12.º ano, desistiu de estudar para ajudar a mãe. Foram demasiados anos a vê-la sofrer de violência doméstica do segundo marido, a ouvir gritos, a assistir a agressões. Tudo piorou quando a mãe engravidou. 

“As coisas, que já eram más antes de a minha irmã nascer, pioraram quando ela veio ao mundo. Eu e o meu irmão não éramos filhos dele…” Foram demasiadas as vezes em que se refugiou no quarto com a bebé para a proteger das cenas de violência. Foi por eles que Sofia deixou de estudar. Foi trabalhar para as caixas de um hipermercado e, com mais um ordenado a entrar em casa, a mãe conseguiu libertar-se daquela relação.

Entretanto, a vida foi seguindo o seu rumo. Sofia trabalhou numa sapataria, serviu à mesa num restaurante, casou. A dada altura, quando trabalhava numa empresa de comércio grossista, ficou no desemprego e surgiu a oportunidade de ir tirar um curso de cabeleireiro. Passou por alguns salões da cidade, geriu outros, e foi conseguindo criar uma boa carteira de clientes.

Depois de alguns anos a trabalhar por conta de outros – e com um filho e um divórcio pelo meio – Sofia percebeu que tinha que seguir outro caminho. “ Eu precisava de suporte financeiro para poder sustentar um filho sozinha.” Não pensou duas vezes e inscreveu-se na licenciatura de Desporto na ESEC, para maiores de 23, área que sempre a atraiu.

“Queria entrar e acabar tudo dentro do tempo previsto. Foi o que aconteceu. Nunca chumbei.”

Com o curso já terminado (e que concluiu enquanto trabalhava) estagiou num ginásio. Não gostou e decidiu regressar aos salões.

Há 10 anos criou o seu próprio espaço, a Sophia Hair Style, na Rua Carlos Seixas. Passa ali a maior parte dos dias, mas nunca deixou de estudar. Tem o nível 4 de cabeleireiro e o nível 4 de barbeiro o que, com a licenciatura que concluiu na ESEC, a coloca no topo da carreira. Dá formação num instituto em Coimbra, mas o sonho – do qual nunca desistiu – é conseguir dar formação no IEFP.

Por agora, no espelho do salão que é seu por direito, vê a esperança de restaurar a beleza dos dias. Determinação não lhe falta.