Número 24

30 de Julho de 2022

O DESPLANTE

Stansted, 2020

FREDERICO MARTINHO

Uma enorme cobertura reticulada cobre o espaço em que as paredes não tocam o tecto. O aeroporto é uma redoma, uma cúpula que protege da chuva, que retém o calor e liberta o chão para o desenho livre dos circuitos da feira. Poucos olham para cima — não há céu para ver, o tecto desaparece numa ideia de interior protegido, um interior que anula um exterior.  Os aeroportos, com o seu papel de posto fronteiriço, tornaram-se lugares de controlo e consumo, tirando partido de uma espécie de armadilha justificada pela necessidade da espera. Assim, foram, a pouco e pouco, assumindo-se não como lugares de passagem,1 de vôo, de utopia, mas de demora e desânimo.

Ao virar da esquina, um polícia segura a sua metralhadora, esse adereço viril que funciona como montra securitária, e a revista dos pertences dá lugar à celebração da mercadoria universal. A violência das luzes, das cores, dos perfumes que envenenam o ar de açúcar. Vendem-se carteiras de couro gravadas a pedras preciosas e sandwiches de pasta de atum a preços próximos do luxo. Os pés deslizam na lisura marmórea de um pavimento sintético. O percurso até à zona de embarque atravessa as prateleiras douradas. Aqui, os seus habitantes debruçam os olhos nos frascos que lhes despejam o perfume das soluções líquidas e evaporantes, que nem chegam a entrar na pele. Inundadas de aromas, luzes e hits, revezam-se na urgência e no aborrecimento. Há voos que não esperam e outros que teimam em não partir. A humilhante revista de criminosos em potência, onde os corpos se entregam ansiosos à corrupção do seu íntimo, deu lugar a um recreio ébrio onde o corpo desaparece no estímulo do consumo. É um misto de humilhação e privilégio, onde todos são tratados com suspeição (somos todos suspeitos) e impelidos a acreditar que a nossa espera é um castigo e uma oportunidade. Duty-free: da isenção de taxas à isenção do dever.

Os aeroportos, limbos morais, onde se entrega a pátria como garantia, são o primeiro estágio dos portais que anulam a textura da geografia, abrindo, ainda não à velocidade da luz, os corredores das injustiças da circulação. A nudez dos ossos, a gordura que cobre o movimento. Lento, pesado, metódico, na triagem dos passaportes. Célere, gracioso, cego, nas trocas do capital. No seu interior, como uma pérola guardada pela carapaça imprescindível, cintilam os cenários arrojados como artifícios numa feira forjada a mentira, cartéis de embuste. Tudo é disfarce, como as madeiras do irish pub são de plástico, como os sumos são extractos de concentrado, como o romance de uma viagem são as costas de uma guerra. Por detrás da fina espessura das placas de gesso, onde os papéis de parede se descolam nos cantos, revela-se a estrutura armada do betão, onde se apoiam as colunas metálicas que sobem até ao tecto e suportam o grande vão, suspenso, aéreo, que levita sobre a festa. Percebe-se, então, que o mercado do consumo fácil, prazeroso, sobrevive, cândido, graças à infra-estrutura maciça que lançou o asfalto na pradaria onde as raposas caçavam as lebres, onde as abelhas fugiam da chuva e o nevoeiro cobria os ulmeiros. A questão já não é o balanço entre o rural ou o urbano, o campo ou a cidade, a viagem ou o turismo, mas sim a perspectiva de que, mais do que uma fronteira ou uma pista de lançamento, um aeroporto é hoje uma simulação demasiado real do desequilíbrio entre o que nos dão e o que desejamos — é a imagem mais próxima do espectáculo degradante em que nos colocam.

O mesmo edifício que, através da transparência da superfície de vidro, revela os comprimentos de arame farpado, os bastidores da logística das excursões, os caminhos transformados em túneis (o afunilamento da visão), a qualidade em velocidade, o devaneio em eficácia. Uma infra-estrutura que começa na exposição bélica da arma do polícia e se prolonga nos bombardeamentos dos territórios longe do alcance da consciência empática. Uma vez descoberta a fina e vaporosa camada mágica que aligeira os gestos das mãos nos objectos, tratarão os pássaros de pousar nas cercas e os homens de os fotografar impávidos. Se há um fim apocalítptico para cada medo, Stansted é uma vibração medonha que adivinha o futuro das nossas cidades.

1 Ver como o aeroporto de Tempelhof, Berlim, que chegou a ser um dos vinte maiores do mundo e considerado um dos mais confortáveis pelo pequeno percurso da entrada até ao avião, foi considerado desadequado (e finalmente encerrado) por não ter espaço suficiente para o duty-free.