Como sabe, não pudemos aceitar a sua candidatura, uma vez que continha uma resposta inválida. Pelos registos, verificámos que tentou várias vezes submeter o formulário sem escrever nada no campo “Superpoder(es)”. Pressionou, por assim dizer, o botão de submissão dezanove vezes e de todas elas lhe foi mostrada, a vermelho, a indicação de que não tinha preenchido aquele campo, razão pela qual não seria dado seguimento ao processo. Optou então, à vigésima vez, por inserir a letra “a”, um estratagema óbvio para aproveitar a liberdade dada por aquele campo, cujo único limite é um número generoso de carateres, e assim ver o formulário provisoriamente aceite. O que quero deixar claro, pois é para isso que me pagam, é que, de acordo com estas instâncias, não se candidatou. Naturalmente, a máquina foi fácil de enganar, mas os olhos humanos deram pela falcatrua, desculpe o termo, quando chegou a vez da análise e categorização das respostas. O “a”, não obstante a sua simplicidade, tem uma rica vivência gramatical, mas não é nada em termos de superpoderes.
O mais estranho em toda esta situação, e o que nos levou a chamá-lo, não foram as dezanove vezes que pressionou sem sucesso o botão de submissão, mas a forma como o fez, bem como a insistência em que o formulário fosse submetido. Embora tenham decorrido sete segundos entre a primeira e a segunda tentativas, as restantes foram efetuadas em apenas onze segundos, um desempenho impressionante que denota uma certa raiva, ou frustração, depois mo dirá. Após uma pausa de vinte e três segundos, lá resolveu escrever o tal “a” e submeteu, por fim, a sua candidatura.
O que nos traz aqui não é reiterar a rejeição e dizer-lhe da atenção personalizada que damos a todas as candidaturas, é tentar compreender a sua recusa em preencher aquele campo. A nossa nova política inclui esta vertente do cuidado, de nos preocuparmos com as pessoas que se relacionam com a organização, de tentar ajudá-las em todas as facetas da sua vida. E você parece, pelas respostas validadas que deu, ser um candidato forte, o que torna a sua persistência na recusa em preencher corretamente aquele campo particularmente inquietante. Por que razão não quer revelar o seu superpoder? Por muito extravagante que seja, é sempre mais embaraçoso não ter nenhum. Aliás, nós agimos na convicção de que toda a gente tem pelo menos um superpoder, pode é não o ter descoberto ainda. Esta possibilidade afigura-se como estranha nalguém com a sua idade e a sua formação, mas é sempre possível. Os casos abundam. Tenho uma tia que, por exemplo, consegue extrair moncos ao mesmo tempo que opera um empilhador elétrico contrabalançado. À partida, ninguém diria que a rinotilexomania multifuncional de que padece desde a infância é um superpoder, mas você não faz ideia da quantidade de vidas que essa característica invulgar já poderá ter salvo lá no armazém.
A ficção criou a ideia, que já devia ter sido completamente ultrapassada, de que ter superpoderes é coisa de mutantes, de criaturas de outros mundos, párias torturados pelo sentimento de inconformidade. Nada podia estar mais longe da verdade! É importante que entenda que, cada um à sua maneira, todos somos especiais, todos temos superpoderes. O que pode acontecer é não os sabermos identificar, valorizar, monetizar, ostentar de forma compulsiva, sem contenção nem decoro, até à náusea para que os outros, essa entidade totalizante e totalitária, não nos achem uns reles montes de esterco, anónimos num mundo em que indivíduos atomizados pululam como percevejos num colchão velho deixado ao abandono nas redondezas da ilha ecológica de um bairro para onde foram chutados os sujeitos racializados. E outros, que eu não sou racista.
Desculpe, deixei-me levar pela paixão que tenho por esta minha atividade, por este meu emprego. Sabe — e esta confissão está fora dos limites do conteúdo funcional da minha categoria —, é esse o meu superpoder: a capacidade de me apaixonar pelo trabalho. Qualquer trabalho. Já fiz muitas coisas na vida, nem você imagina. E a cada uma delas me entreguei como se fosse a última, como se a reforma dourada que nunca irei receber estivesse para chegar no dia seguinte. E agora eis-me aqui, a tentar ajudá-lo com todas as forças do meu ser, graças ao meu superpoder e às toneladas de psicofármacos e cenas mandadas vir da Holanda que me têm aguentado ao longo desta vida de servidão e maus tratos, de trauma, abandono, solidão acompanhada.
(Limpa as lágrimas que lhe começaram a escorrer do olho direito, tremelicante e esgazeado. Pousa os cotovelos na secretária, comprime o nariz entre as palmas das mãos, respira fundo e, de olhos fechados, prossegue)
Diga-me, então, só para efeitos estatísticos: qual é, afinal, o seu superpoder?