Do ponto em que se encontrava, Alice não podia reconhecer a pessoa que jazia na pequena e estreita rua paralela à via principal, mas, quando conseguiu aproximar-se soube logo tratar-se do sr. Fonseca, uma vez que qualquer que fosse o tecido, textura ou padrão do fato que envergasse, sempre muito aprumado, nunca ninguém no bairro o vira de camisa. Mas agora, com o tórax amplamente a descoberto e a região púbica a insinuar uma leve escuridão, compreendeu, com comovida perplexidade, que a aparente nudez esquerda, perfeita e lisa, feita de um material robusto, espécie de pele à prova de bala, desvendava, agora rasgada, várias cicatrizes retrácteis.
Conhecera-o há cerca de seis meses pois era na vida de todos os dias que encontrava os melhores e mais autênticos temas para as suas crónicas. Farta de um jornalismo decrépito, vendido às audiências e sem um mínimo trabalho de investigação, gostava de compreender as motivações que presidiam aos acontecimentos dignos de notícia. Soubera por uma vizinha que o sr. Fonseca era um homem amável e reservado e que vivera com a mãe até ao seu falecimento recente por Covid -19.
Certo dia, Alice fez-se escorregar e quase cair, quando com ele se cruzava, dando assim início a uma curta e intensa relação. Eis a história que ela me fez saber:
Samuel Oliveira era conhecido pelo apelido da mãe, Fonseca. Quando se despia, a sua nudez esquerda era intrigante, suscitando a Alice interrogações quanto às possíveis razões daquele pseudo-desnudamento. Mas o que ela nunca imaginara fora o facto de aquela nudez aparente ser vivida com sofrimento e intenso pudor. Homem fugidio e de parcas palavras, desde que começara a trabalhar no crematório desvelava-se em saudações corteses e nunca tirava a máscara, mesmo quando se encontrava em casa, cumprindo com rigor as normas da Direção Geral da Saúde. No final do dia e após o banho, mudava de máscara que somente removia quando estava prestes a adormecer.
Em boa verdade, as razões desta proteção mínima, necessária mas insuficiente, podiam encontrar-se na necessidade de suportar o cheiro dos corpos carbonizados que, na sua mente atormentada, se materializavam em formas precisas.
Aceitara este emprego como uma escolha que constituíra para ele uma imposição categórica; a aparente normalidade de um trabalho como qualquer outro carregava a sombra transgeracional daqueles que, como o seu avô paterno, pereceram durante a guerra sem terem tido direito a uma sepultura. Agora consumia-o a ideia de os mortos não poderem ser acompanhados e por isso, quando fazia o registo diário de quem chegava ao crematório, dedicava parte do seu tempo a escrever aos familiares dos falecidos, introduzindo nas cartas pedacinhos de relva e cinza que recolhia discretamente na saída do forno.
Tudo começara quando, tomado por uma estranha sensação de angústia, resolvera dedicar o tempo livre a estudar as suas emoções e os efeitos que estas provocavam no sistema cardiovascular. Na verdade, ao sentir o coração à flor da pele e as palpitações no centro do corpo, não percebia o que comandava perturbações tão poderosas que podiam até ser observadas a olho nu, pois todo ele latejava ao ritmo dos batimentos cardíacos. E foi assim que deixou de dormir. Inicialmente não se importou, precisava de organizar as ideias, mas depois sobreveio um receio de perder a consciência e ser assaltado por aquele sonho incomodativo, sempre o mesmo, no qual convivia sonoramente com um outro, como se fora o seu eco.
Certo dia viu na montra da livraria perto de sua casa um livro com um título deveras interessante, “Quem ama não dorme” que o deixou a pensar sobre o tema. Na realidade, salvo aquele amigo mudo com quem costumava passear, não se recordava de ter amado alguém. Talvez a mãe, durante a infância.
Após alguns dias de insónia, seguiu-se um período de noites mal dormidas, sempre entrecortadas com o tal sonho. Sonhava que estava a ressonar e/ ou que alguém ressonava junto dele, de um modo tão intensamente sonoro e ritmado com o coração que este iria explodir ao 27º batimento. Assim, consoante era ele o sonhador/ ressonador ou o outro, o desfecho era diferente. Percebia-o pelo cheiro do suor e a forma de despertar, ora todo encolhido, ora a saltar da cama ao som dos próprios gritos, precisamente durante o 25º batimento cardíaco.
Foi essa a razão que o levou a proteger-se com aquela pele-disfarce, aparentemente reveladora de um corpo nu, mas que, paradoxalmente, ocultava os sinais mais profundos e duradouros do tumulto que grassava no seu interior.
Samuel e Alice foram-se apaixonando e, na véspera do fim trágico que aqui vos relato tinham feito amor pela 1ª vez. E se bem que ele não tivesse despido a sua segunda pele, prometera-lhe desnudar-se completamente no encontro seguinte.
A investigação pericial informou-nos que a morte ocorrera 5 a 7 horas antes e que ele, com toda a probabilidade caíra de costas da varanda do 4º andar. Soube-se depois que a varanda não era usada há anos e que as grades, podres, poderiam ceder ao ligeiro encosto de um corpo relaxado.
Destroçada, Alice subiu ao 4º andar. Junto às cinzas da mãe de Samuel, guardadas no armário da sala de jantar, encontrou um diário escrito a lápis pelo avô Samuel, do tempo em que ainda sobrevivera ao campo de Auschwitz- Birkenau.