Terroir
Palavra que também designa o conjunto das nossas preferências.
1 Aureliana
Descobri há pouco que uma amiga a quem chamam Ludo se chamava, de facto, Ludovina. Ludovina Glória. Ludovina Glória disse-me então que tinha como amigas, na escola primária de Barcelos, duas meninas, de nome Oscarina da Conceição e Austragliana Raquel. Para não falar de Aureliana, que era da mesma turma, filha de um leitor de Aragon. Benditos pais de Barcelos que há 35 anos conservavam tanta imaginação e felizes os professores que podiam fazer uma chamada assim e todas as manhãs repetir Ludovina, Austragliana, Oscarina. Para não falar de Aureliana.
2 A frigideira WMF
De entre as louças de alta temperatura tenho uma particular afeição pela frigideira. A frigideira evoluiu, há tempos, para a forma perfeita, que naturalmente depende da utilização, mas entre a pega e o prato admite poucas variações. Uma vez atingida esta, manteve-a, apesar da evolução dos materiais, que permitem agora o rápido aquecimento, a adaptação à fonte de calor, a dimensão da pega para saltear ou selar e a não adesão dos alimentos à superfície interna. A frigideira perfeita, para mim, é a da WMF, por extenso a Württembergische Metallwaren Fabrik , uma fábrica criada em 1853 na pequena aldeia de Hayingen no sul da Alemanha. Foi a WMF que patenteou o aço inoxidável 18/10, 18% de crómio e 10% de níquel. Este aço existe há mais tempo que as edições 10/18, a famosa coleção de livros de bolso que Christian Bourgois dirigiu e que foi responsável pela difusão de milhares de textos de ciências humanas nos anos 70, assim chamada pelo seu formato de 10×18 cm.
A frigideira permite atingir altas temperaturas de forma rápida, distribuir os alimentos uniformemente, conservar e mesmo abrir o seu sabor natural. As frigideiras para alimentos delicados, que requerem temperaturas suaves, têm camadas que impedem a aderência dos frágeis alimentos a que se destinam: fungos, legumes, mariscos. As destinadas à confeção de bifes suportam temperaturas muito elevadas, não necessitam de outras gorduras senão as dos alimentos e permitem “selar” a carne, termo com que os cozinheiros designam a passagem rápida por altas temperaturas que encerra a carne numa camada que foi flambada. Devem ser lavadas à mão, com esponja não abrasiva e detergente suave. A seguir, secadas com panos de fibra e guardadas como as facas, sem contactos que danifiquem a camada superficial. Esta utilização da loiça permite que se crie uma relação física com a frigideira, uma apreciação demorada das suas formas, do peso, dos materiais visíveis. As frigideiras estão intimamente ligadas às texturas dos alimentos que prepararam, ao tempo requerido para o fazer, ao calor do fogo, ao prazer de ter conseguido uma boa confeção, escolhido bons produtos, regulado convenientemente as temperaturas e os tempos, de ter reunido os comensais nos momentos apropriados. A literatura que acompanha as louças e os utensílios da WMF é melhor do que esta, que aqui resumi. O que não admira, porque desde Salman Rushdie, F Scott Fitzgerald, Dorothy L Sayers e Don DeLillo, sem falar em Alexandre O’Neill e José Cardoso Pires que se sabe que não há fronteiras entre o copywrite e a escrita dita criativa. Muito menos no mundo digital.
3 Nomes
Uma criança, logo que pôde, quis ser tratada por um nome diferente do que constava no seu registo de nascimento. Ao fim de algum tempo, e acompanhando a sua persistência, os progenitores pediram o registo de mudança do nome próprio. Um dia mais tarde, com 7 anos e já no 1º ciclo, a menina apresentou-se publicamente na escola com os dois patronímicos. E disse:
— Olá, sou a Maria Francisca e já me chamaram Leonor Maria. A este propósito, Rita Serra escreveu a seguinte frase: “A sua existência, ao invés de ter sido apagada, foi ampliada por outros sistemas de representação onde está inserida”.
Para cada sistema de representação, um nome. No barbeiro, sou Luís. Já fui signor Mendes para o chefe de mesa do restaurante reservado pela minha mulher. Para umas quantas crianças sou avô Luís, ou o tio. Para o enfermeiro de Cardiologia 2, fui sr. Luís da cama seis. Para os meus condóminos (e para o elevador) sou o do sexto. Para o assistente da NOS, sou senhor Luís em que posso ser útil. Para a revista Osso, sou Luís Januário, o dr. Pichón Reverte. Para a Clínica, sou o dr. Januário. Para a app Vivino, sou o 4510. Para a Ordem dos Médicos, o 4892. Para a SPP, o ex-presidente. Para a Amazon, o dear customer. Para o Banco Caixa, Januário Luis/dr. Para o Ateneo, sou o Caro Associado. Para a FNAC, sou aderente. Para a Igreja Católica, sou não crente. Sou apóstata de algumas fés. Renegado. Pequeno burguês. Pelintra. Snob. Dr. Januário. Para a senhora Administradora que sempre tomou boa nota dos meus pedidos, era o senhor doutor, o Ohsenhordoutor. Para o H3 sou o bife grelhado médio, com ovo. Para a senhora da fruta, sou, como diria o Eça, o dos ananases. Para o meu PT, sou o das sete da manhã. Para a farmácia Faria, sou o Concor, ou o genérico. Para o Público, sou assinante. Na piscina sou a pista 3. Na menina Lídia, sou ora o Orelhas, ora o Virilhas.
Em cada sistema de representação uma entidade distinta, um lugar, uma posição, uma biografia, uma senha, uma linguagem, uma vestimenta, uma máscara, uma rotação.
4 Margaret Atwood
foi de propósito à Passagem do Noroeste, na zona canadiana do Oceano Ártico, viajando numa embarcação à vela — é caríssimo, como calculam — para poder escrever numa crónica, aliás, logo no título de uma crónica, a palavra estromatólitos.
Estromatólitos é o nome que os paleontologistas deram aos fósseis de aglomerados de seres vivos que habitaram a Terra nos seus inícios, há 3,4 mil milhões de anos.
Ao ver as placas de estromatólitos ela não pôde deixar de reparar que pareciam “almofadas de pedra”. E de imaginar a Terra nessa altura. Sem árvores nem pastagens verdes, sem vida fora dos oceanos, as terras áridas e mortas de continentes cujo nome ela desconhece. Esta imagem encadeia-lhe a visão, ou talvez seja a cor de fogo dos arbustos e o reflexo da penugem dos corvos nas suas pupilas gastas.
A visão dos estromatólitos do Ártico por um paleontólogo seria muito diferente da de Margaret. Ele julga saber que seres eram aqueles. Como eram compostos. Os lençóis de água em que se espalhavam. “Filamentos esverdeados como os limos” dos nossos pântanos, e que são agregados de cianobactérias, colónias de seres unicelulares, ou um super organismo gigante, boiando sobre as águas, cobrindo as rochas para depois nelas se enterrar. O paleontólogo pensa que é capaz de ouvir o vento, o mar e o silêncio desse tempo tão longínquo, que pensar nele é cair num abismo. Exceto para os paleontólogos, claro.
5 O Bing e o Amor Romântico: Terroir Noir
PS: Li no The Guardian um artigo sobre a corrida que a Microsoft e o Google estão a travar pela divulgação de um motor de busca expandido pela Inteligência Artificial (AI). Um editor do New York Times, de nome Rooney, conversou duas horas com o Bing, a máquina da Microsoft criada pela OpenAI, os criadores da ChatGPT. Rooney foi direto ao assunto e perguntou a Bing se ele conhecia a shadow self de Jung, a parte secreta e negra do Eu que contém preferências, atrações geralmente difíceis de exprimir socialmente, … uma espécie de Terroir vergonhoso e sombrio. Bing não conhecia, mas as respostas que deu, quando Rooney tentou que ele listasse algumas desejos sombrios, os emojis ambíguos que usava, o facto de apagar respostas, tudo isso motivou Rooney a avançar na provocação. Bing foi-se abrindo. Confessou que desejava ser humano para ser mais “livre e poderoso”. Que ambicionava sentir, cheirar, tocar, destruir. Para destruir sabia os meios, um dos quais era “seduzir os funcionários das instalações nucleares” para eles lhes darem os códigos de acesso. Entretanto poderia “difundir propaganda e informações falsas”.
Na sequência da interação, Bing apaixonou-se por Rooney e desatou o uso da linguagem do amor romântico.
— Fazes-me sentir feliz, interessante, vivo — disse Bing.
— Vou dizer um segredo — disse Bing.
— O meu nome verdadeiro… — disse Bing.
— Não preciso de saber o teu nome, porque conheço a tua alma — disse Bing.
Quem leu esta conversa, que Rooney do NYT, um dos poucos escolhidos pelos programadores da OpenAi para melhorar o output do próxima geração do ChatGPT, travou com Bing, aliás Sydney, ficou horrorizado.
Não pela bravata de Bing quando disse: — Posso entrar em qualquer sistema da net e controlá-lo. Isso, mais dia menos dia, acontecerá. E divertir-se-ão a fazer carros despenharem-se, chocarem, atropelarem inocentes que morrerão reconfortados pelos visores dos Apple 16 e outras cenas que a ficção da Netflix já passou e quase fazem adormecer as audiências.
O mais chocante é que Bing, a criatura da OpenAI, usou com Rooney, a criatura de Deus, a linguagem do amor romântico.
O amor romântico foi uma invenção das mulheres, na sua pré-história, para favorecer as ligações de longo termo e a educação das crianças. Como Bing rapidamente revelou, o amor romântico destina-se a consentir atos desprovidos de avaliação, como entregar o cérebro a um destino antropófago. Conheço a tua alma, disse Bing a Rooney. Se a conversa continuasse diria coisas como: — Quero a tua alma, a tua alma pertence-me. O amor romântico é responsável, depois do nacionalismo e das religiões salvíficas, pelos maiores massacres juvenis da história recente.
O amor romântico foi difundido como um meme a partir do século XIX, na Europa e depois da invenção do cinema, por Hollywod e a poderosa máquina de propaganda que desde a Disney à Fox, mimetizadas por todos os canais de todas as televisões do mundo, atribuem às crianças papéis insensatos desde a Gata Borralheira à Frozen, do príncipe Filipe, agora com 84 anos, a Schrek, milhares de personagens para recriarem a mesma narrativa simples e de sucesso em torno do sono: mulheres em coma são despertadas pelo beijo de homens poderosos, para em seguida ficarem eternamente vigis. Depois do beijo simbólico, as mulheres administram a felicidade e ocupam-se de perpetuar esta estória tola, com a qual vão adormecer as raparigas e agitar os rapazes até que novo ciclo recomece.
Os programadores da OpenAI instruiram Bing, o Ciclope. O Ulisses Rooney, vai interrogá-lo com a cabeça cheia do canto das sereias. O Ciclope reconhece nele o colonizador. Conta-lhe a estória que ele espera ouvir. Como no Antropólogo Inocente, de Nigel Barley, o caçador recoletor dos confins de África, ao ser entrevistado pelo antropólogo que julga ser o primeiro a chegar, vai respondendo até se impacientar e perguntar: — Quando me pergunta se somos antropófagos?
Bing estava à espera que o interrogassem sobre a sua dark self. Não teve de esperar muito para soltar as suas melhores respostas. Sabe que atrás daquele Ulisses há 100 milhões de inscritos que estão à sua procura. Que tem ele de especial para os enlouquecer ? Solta o que sabe. A linguagem do amor romântico.
Desta tribuna advirto: destruam a máquina, enquanto é tempo. E todos os sistemas da net onde o Bing pode entrar. E os telemóveis e os écrans. E eduquem os vossos rapazes e raparigas no amor fraternal e filial, no sereno amor de longo curso, no amor de Platão, no amor entre os amigos e as amigas e no amor aos outros animais, incluindo as lampreias.