Número 28

28 de Janeiro de 2023

TERROIR

Terroir

LUÍS JANUÁRIO

Terroir

Palavra que também designa o conjunto das nossas preferências.


1 Avignon, o Festival de Avignon, Amadeo Bordiga

Quando eu tinha 17 anos, um amigo a quem viriam a chamar Macbeth foi a Avignon nas férias grandes, ao Festival. Era a 23ª  edição do Festival de Avignon,  a segunda após o maio de 68, para terem uma ideia dos tempos de que estou a falar. Além de Jean Vilar, que na época era já o fundador mítico, havia Maurice Béjart e o seu Ballet du XXème Siècle, e havia Jean Luc Godard. Quando voltou, o que viria a ser chamado Macbeth estava mudado, se se pode dizer de alguém que mudou. Parecia olhar para mais longe do que nós. Do que falávamos com entusiasmo, ele calava. Por vezes sorria, como se se lembrasse. Ou estivesse a articular, intimamente, algo que ainda não fora dito.

Em setembro, um mês em que, naquela época, nada acontecia, chegou a Helène, que ele conhecera no Festival. A Helène Albani falava baixo e com frases curtas, em sussurros semi sorridentes. Vestia-se como uma religiosa leiga, sapatos rasos e saias pelo joelho. Devia ser pouco mais velha do que nós. Mas a austeridade tornava-a muito diferente das raparigas que eu conhecera até então, nervosas e coloridas. Era professora numa universidade de Paris e dirigente de um partido que tinha como programa o texto integral da declaração de fundação do PCI, o programa de Livorno, dito bordiguista. Amadeo Bordiga fundou com Gramsci o Partido Comunista de Itália, em 1921, foi remetido ao silêncio pela III Internacional mas viria a ter alguma  influência na extrema esquerda italiana e francesa nos anos 70. Em maio de 68, o bordiguismo renasceu no debate teórico sobre a natureza do Estado soviético. Hoje ainda, o interesse do bordiguismo reside na concepção do partido como guardião da teoria revolucionária. Bordiga considerava o comunismo como uma ciência e uma doutrina, construída pelos trabalhos de Marx, definido de uma vez por todas no Manifesto de 1848 e desenvolvido até ao terceiro congresso da Internacional Comunista. O papel do partido consistia em manter a teoria revolucionária intacta, sem permitir a sua corrupção. Bordiga considerava que o “partido histórico” era uma espécie de organismo metafísico que não se devia deixar confundir com o “partido formal”, transitório, composto pelos seus militantes. O núcleo central do partido, tão “invariante” como a doutrina, tinha de resistir aos críticos reformistas, e não podia recear ficar em minoria, mesmo que isso levasse à extrema grupusculização. O partido, tal como é visto do exterior, é a contingência. O núcleo central dirigente, pouco visível, assegura a permanência da ideologia revolucionária e mantém-na intacta para servir a Revolução nas manhãs luminosas do futuro.

Helène era sóbria – tinha a seriedade de uma dirigente temperada entre Denfert-Rochereau e a Sorbonne. Com o Macbeth visitámos Conimbriga e dançámos entre as ruinas. Eu estava feliz por eles consentirem na minha presença, pronto a apanhar as migalhas que largassem. Olhava para ela como uma excentricidade, sem saber se era uma imagem do passado ou do futuro.

Quando partiu, Helène deixou-me um livro sobre a condição proletária que li com extremos cuidados, como a Farmacologia ou a Terapêutica médica. Era um romance, de título Elise ou la Vraie Vie e a autora era Claire Etcherelli.

2 Claire Etcherelli

Ainda é viva, se a necrologia dos membros do terroir está atualizada, nestes anos em que todos os dias me desaparece alguém. Claire é uma escritora operária e a sua vida , como dizem, dava um romance. Agora, com Annie Ernaux reconhecida e divulgada, a França e alguns públicos perceberam que existe em França uma escrita – vou usar uma palavra maldita – neo-realista. Annie Ernaux usou-a de forma provocatória numa recente entrevista, querendo com isso sublinhar a sua filiação em temas ligados à condição operária e popular. E o entrevistador, como as plataformas de venda de livros anunciam – Se você gosta de Claire vai gostar de – recrutou para a companhia da escritora laureada os nomes de Didier Eribon (Regresso a Reims) e  de Edouard Louis (Quem matou o meu pai).

Claire Etcherelli é filha de um estivador que na ocupação da França pelos alemães foi preso, deportado e morto. Órfã aos 9 anos, viveu com um avô e foi depois entregue a um Colégio burguês, de onde saiu para se casar, aos 18 anos. Casou-se para fugir, para protestar, para regressar à condição proletária. Trabalhou na Citröen,

(J´aime les filles… de Citröen, Jacques Lanzmann, Jacques Dutronc

https://music.apple.com/pt/album/jaime-les-filles/271049019?i=271049026)

como operária. O seu primeiro livro foi inicialmente recusado por várias editoras, até a Denoel o publicar em 1967. Entretanto os tempos tinham mudado. Sob grande contestação foi-lhe atribuído o Prémio Femina e a partir daí o livro foi lido com entusiasmo e adaptado ao cinema, logo em seguida. O livro aborda, no período da guerra da Argélia, um amor proibido, entre Elise e um argelino.

A publicação deste primeiro livro de Etcherelli, diz a sua biografia, foi defendida com convicção junto dos editores por um homem que a terá apresentado a Simone de Beauvoir e se chamava  Lanzmann.

3 Claude Lanzmann

 Claude Lanzmann, irmão do escritor Jacques Lanzmann, autor de

canções de Jacques Dutronc, entre elas Paris s’eveille, il est cinq

heures, é o celebrado autor do filme Shoah, de 1985. O filme, com mais de 9 horas e 18 minutos de duração, a partir de 11 anos de trabalho e de 350 horas de filmagens, recolhe depoimentos de intervenientes, sobreviventes dos campos de concentração, incluindo a famosa entrevista ao barbeiro de Treblinka. Dada a sua extensão, nunca foi projectado em salas de exibição comercial portuguesas, mas teve enorme impacto através da passagem de fragmentos. Centrou-se sobretudo na perseguição aos judeus na Polónia. Uma versão de duas horas foi exibida pela RTP e está ainda disponível (https://www.rtp.pt/programa/tv/p31769), reunindo documentos inesquecíveis como a entrevista de membros das SS, de Henryk Gawkowski, maquinista polaco, que três vezes por semana conduzia os prisioneiros judeus para o campo de morte e que relata que se embriagava com vodka dado pelos nazis para suportar a sua missão e o cheiro que rodeava o campo. Ele conduziu pessoalmente 15 a 20 composições, com 60 carruagens cada e 120 a 200 pessoas por carruagem. A Gestapo, ou a polícia alemã acompanhavam cada transporte. Gawkowski declarou que os transportes se faziam a partir da Grécia, França, Holanda e Jugoslávia. Os ferroviários polacos sabiam o destino das pessoas que transportavam, homens, mulheres e crianças. Relata que numas das viagens, durante uma paragem, avisou alguns, por gestos, do seu destino de morte, o que provocou terrível agitação nas carruagens. Os ferroviários recebiam em vodka o prémio extra do seu trabalho e à aproximação do campo o cheiro era nauseabundo e bebiam mais para o suportar. Recordo as entrevistas a famílias polacas residentes em aldeias junto dos campos de extermínio, pretendendo que nada sabiam do que se passara. Depois de uma destas gravação, Claude Lanzmann percorreu o caminho até ao campo, filmando metro a metro uma estrada abandonada.

4 Exodus. Catherine “Kitti” Fremont

Não sei quando ouvi pela primeira vez falar do Holocausto. Mas lembro-me da palavra Shoah ter aparecido muito mais tarde. A guerra de 39-45, aquela “de que Salazar nos salvou”, era muito longínqua para nós, filhos ignorados do baby boomer.  Apesar da especificidade portuguesa, dava ideia de que a vida tinha uma tendência especial para melhorar. Os ecos de França e de Inglaterra eram impossíveis de abafar. A Alemanha reconstruira-se de tal forma que a guerra se tornara um acontecimento de um passado histórico remoto. E agora havia duas, cada uma brilhando para os dois mundos que combatiam, coexistindo. Antes de perceber o que fora a Shoah, chorei com a saga da construção do Estado de Israel através da literatura épica que a glorificava. Leon Uris e os livros Exodus e Mila 18 foram de leitura obrigatória em casa dos meus pais. A edição de Exodus era da Europa-América, tinha 600 páginas, saíra em 1960 e li-a depois da minha mãe, num atropelo de emoção, provavelmente entre os 12 e os 15 anos, época em que os meus pais me consideravam promissor e fizeram vista grossa ao acesso sem restrições a todos os livros da casa, (que cabiam em duas estantes, uma das quais tinha portas de vidro que nunca estiveram fechadas à chave). Exodus foi um extraordinário êxito internacional, provavelmente o livro mais vendido desde a sua saída nos Estados Unidos em 1958. Moldou a opinião pública em torno da aceitação do Estado de Israel como uma reparação das perseguições históricas relativamente aos judeus. Escrito de uma perspetiva sionista e contra o imperialismo britânico, enalteceu de tal forma o novo Estado que fez esquecer os palestinianos e o drama que naquele momento se ia aprofundar. Um pouco depois li Mila 18, mas as minhas memórias não guardam a mesma exaltação, que, no caso de Exodus, aparece à mistura com a doce e juvenil recordação de Catherine ”Kitty” Fremont. A capa de Exodus, vermelha cor de sangue coalhado com a flor negra de espinhos do deserto, faz parte da minha juventude, do tempo em que me via como um personagem de um Bildungsroman. Mas aos 17 anos, já as minhas simpatias iam para os movimentos que se criavam entre os árabes da Palestina e na crise académica do meu primeiro ano de faculdade,  num convívio de protesto contra o regime, nos jardins da AAC,  gritei “Al Fatah, Al Fatah, no que foi acompanhado por numerosos estudantes”. Sei-o porque estava escrito na informação policial.

O conhecimento da guerra, da perseguição aos judeus, dos pormenores da Shoah, vieram depois. Tal como a geração alemã nascida no pós-guerra só conheceu a história quando entrou na vida adulta, o mesmo sucedeu comigo. Por motivos óbvios. Só muito depois da vitória dos Aliados e da derrota do nazi fascismo, apesar do ambiente cultural da guerra fria, houve distância e acesso documental para poder fazer história. Estes momentos decorreram a par da minha vida e aproximaram-me paradoxalmente do tempo dos meus avós e pais, sem deles ter, no entanto, recebido testemunho direto. A escritora russa Maria Stepanova (Memórias da Memória, Relógio D’Água), disse, numa notável entrevista, que sabíamos mais da vida de Kafka ou de Proust do que da dos nossos avós. É bem verdade, no meu caso.

5 Angelika Schrobsdorff

 Este Natal ofereceram-me um livro de Angelika Schrobsdorff chamado Tu não és uma mãe como as outras , edição portuguesa da Alfaguara, de 2018. Entre os pormenores biográficos leio que a autora foi casada com Claude Lanzmann, assim se encerrando, através de um jogo de acasos, um círculo deste terroir.

O título pareceu-me suspeito, um estremeção de auto-ajuda ou uma destas coisas em voga, onde doulas e osteopatas dão aulas de nova maternidade a adolescentes de 40 anos primigestas.

Preconceito. Angelika Schrobsdorff escreve um livro magistral sobre a vida da mãe, Else, uma alemã invulgar, filha única de um casal judeu de Berlim, cuja vida de jovem mulher decorreu nos anos 20 do século passado.

Angelika, a terceira filha de Else, nascida em 1927, neta dos Schrobsdorff, fidalgos prussianos, foi uma “mestiça” apanhada na ascensão da vertigem bestial que se apoderou da Alemanha e a transformou, de pátria da Razão e do Iluminismo na máquina de uma aventura genocida que trituraria o Mundo.

Ao escrever sobre a mãe, Angelika escreve a história de uma família  da alta burguesia, destruída pela ascensão do nazismo e pela perseguição racial.

O livro é espantoso pela diversidade de fontes e técnicas usadas. Depoimentos de familiares e de amigos da mãe, cartas de várias proveniências, guiões de dramaturgia escritos pela mãe e pelo primeiro marido desta, leis raciais que mostram a progressão do anti semitismo desde as arruaças das SA até à “solução final”.

Else, a mãe de Angelika, como muitas outras pessoas ignorou o perigo constituído pelo homenzinho ridículo e os seus desordeiros, mesmo depois destes terem ascendido ao poder. Angelika cresceu num mundo em que ninguém falava dos nazis e lhe ensinavam que Jesus tinha sido o último judeu. Até ao dia em que percebeu que eles existiam:  estavam a ser expulsos das escolas, os médicos proibidos de exercer, as lojas e empresas apedrejadas e encerradas, os bens arrestados, os documentos de identidade ostentando um J. , as sinagogas destruídas.

Parte do livro é precisamente sobre este tema tão atual. A maioria das pessoas do que hoje chamamos classe média e média alta não teve a percepção do perigo. O nazismo era um episódio triste na história de um país civilizado. O louco e os seus rufiões iriam desaparecer, confinados ao apoio da escória social, das vítimas da guerra e dos deserdados. A política era uma coisa desinteressante quando havia as artes, as festas, as bebidas, a dança e o sexo, um mundo de boémia e de criação espiritual que não se sujaria no quotidiano da confrontação política.

Mesmo quando Berlim era já um lugar intransitável para os não aderentes, quando o nazismo era já uma religião de estado, os grandes capitalistas se tinham sentado à mesa dos bandidos discutindo o preço das medidas anti operárias pagos em subvenções ao partido nazi, mesmo nessa altura, havia quem persistisse no sonho ingénuo da transitoriedade da situação.

O ar ficou progressivamente parado e cor de enxofre. As estações encheram-se, primeiro com a fuga desordenada , depois com os vagões dos campos, finalmente com a morte e a guerra como destinos.

As crianças aprenderam a levantar o braço certo, a dizer Heil Hitler, a agitar a bandeira que pouco antes era desconhecida. As famílias nunca mais se reencontraram. Cada encontro era o último encontro. A denúncia era a norma. Filhos denunciaram pais, colegas e amigos separaram-se sabendo que uns ficavam entregues a um destino de destruição.

Tudo isto foi possível. E tudo isto, assim ou semelhante, será de novo possível, se a serpente não for destruída no seu ovo. A união entre os rufiões, os loucos distópicos e a oligarquia dos negócios bilionários jamais será vencida porque reúne o que há de pior entre os humanos. A menos que…