Cresceu a sujar o corpo na terra e a terra nunca mais lhe saiu do corpo. Nem do olhar. Aos 30 anos, Tiago Cerveira é, talvez, o realizador que melhor tem sabido documentar, através da fotografia e do vídeo, o património imaterial e material da Serra da Estrela e Beira Serra portuguesa.
Natural de Travanca de Lagos, nunca deixou de sentir o apelo de um “legado comum”. É isso que quer mostrar: não só a luz que rasga as manhãs ou o ribeiro nervoso que desce a encosta da serra; não só as noites em que a natureza emudece e em que o dia é uma promessa. Nas imagens captadas pelo olhar azul-quase-transparente de Tiago há uma comunidade que se recusa a desaparecer, apesar da desistência de tantos.
“Crescer na aldeia é marcante para o resto da vida, numa comunidade como a minha, com cerca de 600 pessoas, em que todos nos conhecemos pelo nome e pelo legado de cada família. Depois há o legado comum, o património material e imaterial, a oralidade, os saberes e os sabores. Temos desde muito novos o prazer e privilégio de colocar as mãos na terra, de correr livremente de casa em casa, de horta em horta”, conta.
Foi com essa liberdade, essa possibilidade de descobrir o mundo, que aos oito anos o pai o deixou brincar “à vontade” com uma câmara de vídeo que tinha acabado de comprar.
“Depois de encher umas quantas cassetes, foi tudo para a prateleira. Passados 12 ou 13 anos dei por mim a rever essas cassetes e a reviver os momentos daquele ano. Apaixonei-me aí, pela magia de imortalizar momentos. Nunca mais parei.”
Licenciou-se em Comunicação Social, na Escola Superior de Educação de Coimbra, mas trocou as lides do jornalismo como repórter de imagem pelo marketing na área de vídeo e fotografia. Contudo, nunca deixou de documentar o património de Portugal rural, através do projeto “O Meio e a Gente”, que iniciou há nove anos e em que capta imagens da região onde cresceu.
“É um projeto que pretende imortalizar o património material e imaterial das minhas origens, mas também de todo o país. No fundo, é um ponto de vista estético sobre algo que é de todos e de ninguém. Acredito que uma comunidade vinga pela participação ativa de cada indivíduo, eu tento fazer a minha parte, com este projeto”.
Através de “O Meio e a Gente”, Tiago Cerveira já seguiu a família Alves, a quinta geração de pastores Serra da Estrela que todos os anos, em domingo de Pascoela, vai pagar a promessa à Romaria dos Rebanhos de São Geraldo, em Tábua (em “Pagar a Promessa”). Já acompanhou pessoas que perderam tudo para os incêndios (“15 Memórias do Fogo”). Documentou o último dia de trabalho da mãe, Hortência, que dedicou 47 anos da sua vida a fazer fatos para todo o mundo (em “Factos dos Fatos”). Reviveu a Corrida do Entrudo das Aldeias do Xisto de Góis (“A Máscara de Cortiça”), uma curta documental em que o protagonista – Manuel Claro, um dos últimos habitantes da aldeia de Aigra Nova – acabaria por morrer dias depois da rodagem.
“O projeto que mais me marcou foi o “15 memórias do Fogo”, depois de, no fatídico dia 15 de outubro de 2017 ter lutado contra aquele apocalíptico incêndio, e ter tido a sorte de não perder entes queridos nem bens de maior. Depois de viver aquele pesadelo, por desafio do Rodrigo Oliveira que realizou comigo esta websérie, fomos para o terreno registar histórias do que se viveu naquele dia e naquela noite”, recorda.
Enquanto filmava “15 memórias do fogo”, Tiago conheceu Lynn Mylou, uma holandesa que trocou o país de origem pelo interior de Portugal. Lynn é mentora do “Wildlings”, um projeto que une jovens de várias nacionalidades que trocaram as cidades pelo Pinhal Interior e que querem incentivar outros a fazer o mesmo. Esta websérie de seis episódios conta as histórias de jovens que mudaram de vida para “habitar as quintas abandonadas, rejuvenescer os campos e reflorestar as encostas montanhosas”.
Tiago Cerveira sabe que a desertificação das zonas rurais do interior do país é “inegável”, que “é um território cada vez mais envelhecido”. “Mas também existe atualmente uma nova vaga de novos povoadores: portugueses ou estrangeiros. Acredito que é possível conviver com as diferenças culturais, de parte a parte, pois só assim voltaremos a abrir escolas e mercearias, só assim voltaremos a abrir as casas fechadas e a cultivar as terras férteis e acima de tudo as pessoas. É este novo conceito de comunidade que me faz ficar”, diz.
Os trabalhos deste realizador (todos disponíveis no site tiagocerveira.com e instagram @tcerveira) têm merecido prémios em festivais nacionais e internacionais. “O reconhecimento é bom, mas não é o mais importante”, assegura.
O que importa? “Que o tempo permita suster o olhar na descoberta de outros territórios”. Nesse lugar onde a terra se entranha no corpo e a que Tiago há de sempre chamar “casa”.