Número 2

24 de Abril de 2021

CAIXA ALTA

Tiago Pereira: A Música Portuguesa a Gostar dela Própria. E nós dela

ANDREIA M. SILVA
Tiago Pereira (créditos: A música portuguesa a gostar dela própria)


É uma era que termina. O tempo do cantar ao desafio, das rezas vertidas em azeite contra o quebranto, das canções do trabalho quotidiano ou do som do amolador que se anuncia. Enquanto for possível, Tiago Pereira vai resgatando essas memórias àqueles que “têm conhecimentos únicos e formas de vida muito suas”.

Realizador e documentarista, Tiago é mentor do projeto “A música portuguesa a gostar dela própria”, nascido há 10 anos com a missão recolher, gravar e divulgar o património de tradição oral e memória coletiva existente no país.

Nascido em Lisboa, Tiago Pereira escolheu residir na região Centro, onde a música “A música portuguesa a gostar dela própria” ganhará um centro interpretativo. Será em 2022, em Serpins.


– São 10 anos de “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria”. Não imagino quantos sons ouviu, quantas pessoas conheceu, quantas histórias e tradições…
– Isso nem sequer é quantificável. Nos últimos anos, “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria” desenvolveu-se muito, mesmo durante a pandemia porque nunca parámos de gravar desde março do ano passado.


– Passou a gravar as pessoas à janela.
– Sim, “A música Portuguesa, à janela, a gostar dela própria”. E isso até foi bom porque criou um aspeto social, de combate ao isolamento, e também nos deu o prémio Maria José Nogueira Pinto em responsabilidade social do ano passado. Mas o projeto nunca parou. Neste momento, “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria” caminha para os 7 mil vídeos (publicados) e para os 3200 projetos.


– Quando diz “projetos”, refere-se a quê?
– São pessoas diferentes, são 3200 projetos musicais.


– Muitos desses projetos musicais são pessoas “anónimas”. Como chega até elas?
– Isso dava horas de conversa. Em todas as situações há formas diferentes de chegar às pessoas. Quando vamos para determinado lugar temos sempre a questão do território. Porque vamos ter um protocolo com uma câmara municipal ou com uma junta de freguesia, uma associação cultural que tem pessoas que querem ser gravadas. Depois há outras formas. Por exemplo, em Mértola, onde estivemos a gravar nos últimos dias, tudo aconteceu de forma cómica e genuína: a maior parte das coisas que nós gravámos foi através do agente funerário da região.


– Um agente funerário?
– Sim. Porque ele também é músico e faz produções musicais. Começámos às 10H00 a entrar na agência funerária para descobrir pessoas para gravar, ele fez uma série de telefonemas, meteu-se connosco no carro e fomos gravar um homem que cantava cante alentejano sozinho. Incrível. Tinha 85 anos e pertencia ao grupo coral. Tinha colocado um pacemaker há um mês e gravou duas músicas connosco. Esse senhor indicou-nos o seu tio, fomos à aldeia do tio, gravámos o tio. Naquele momento estava lá uma senhora que conhecia um outro senhor. Foi buscar o outro senhor e gravámos. Portanto, a forma como descobrimos as pessoas depende das situações e dos sítios.


– Como é que tudo começou? Quando começou a gravar pessoas?
– Comecei a gravar pessoas em 1998 quando descobri um homem a trautear, imitando o som do acordeão, em Odeceixe. Gravei aquele som. Depois tinha umas imagens de outro homem que vivia sozinho numa aldeia acima, no Carvalhal, perto da Comporta, sem água e luz, mas das quais não tinha som. Coloquei o som de um por cima da imagem do outro, o que deu origem ao documentário “Quem Canta Seus Males Espanta”, que ganhou o prémio de Melhor Realizador dos Encontros de Cinema da Malaposta.
Depois comecei a gravar mais seriamente em 2001 e 2002 quando fui para Trás-os-Montes. A partir daí comecei a fazer aquilo que faço hoje. A ir para o interior do país e filmar pessoas. Em 2003, comecei a fazer um documentário sobre os burros de Miranda do Douro e fiquei a viver em Trás-os-Montes durante uns tempos.


– Foi aí que conheceu a Adélia.
– Sim. Gravámos muito. Gravámos muitas pessoas. E a Adélia entra em todos os meus filmes. Criei uma relação com ela e comecei a visitá-la regularmente, durante 12 anos, cheguei a passar Natais com ela. Depois ainda fiz um filme em 2009 para a d’Orfeu Associação Cultural, para o B Fachada (Tradição Oral Contemporânea), para a PédeXumbo, sempre tudo à volta da tradição. Só depois de tudo isto é que surgiu a “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria”. Vem tudo na continuidade de mim enquanto realizador.


– Foi um projeto que teve um crescimento muito rápido.
– Sim. Em 2011, comecei a fazer um filme para a fundação Inatel – Sinfonia Imaterial – que me pôs a gravar 80 coisas diferentes pelo país de música tradicional. E eu comecei a entender a diversidade que existe fora das cidades e a gravar cada vez mais. Nunca mais parei.


– Uma década a gravar continuamente. Ainda há coisas para gravar?
– Há sempre coisas para gravar. “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria” grava uma transição, grava este período de transição da chamada era da tradição oral para a era da tradição digital. Aí podemos fazer muitas perguntas, como a questão da globalização: se as coisas há 50 anos não eram mais diversificadas, mais ricas e menos uniformes. E, obviamente que eram. Costumo dizer: “antes tu saías, ias ao café e encontravas toda a gente; hoje estás em casa e vais ao Facebook ver quem é que está no café.” Essa é a grande diferença. E essa diferença, parecendo que não, muda tudo. O que acontece é que essas pessoas que trabalhavam no campo na segunda metade do século XX (muitas delas analfabetas e sem outras formas de memorizar as coisas a não ser na cabeça porque não tinham como as registar), só mais tarde é que foram contaminadas pela globalização. E todas elas estão a desaparecer porque são as que nasceram até 1940, 1945. Portanto, quando essas pessoas morrerem, continuará a existir a tradição oral porque a tradição oral nunca vai morrer mas, de certa forma, já não depende tanto da memória. Dependerá mais dos meios de comunicação digital. E aí é tudo muito mais rápido, é tudo muito mais acelerado e as coisas vão ser, obviamente, muito mais uniformes.


– “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria” é o registo dessa transformação?
– Aquilo que gravamos são pessoas. O que nós gravamos é a interpretação, como é que as pessoas chegaram ali, porque é que cantam aquilo. É importante gravar os grupos que cantam estas modas repetidas porque isso faz parte do processo, dessa transformação de uma era noutra. Portanto nós, de certa forma, estamos a documentar esse processo. É o aqui e agora que vivemos neste momento. E é um privilégio. É um privilégio estar a viver neste momento em que as coisas estão a mudar tão radicalmente.


– Na verdade, está a gravar o fim de uma era, que fará parte da nossa memória coletiva.
– Sim, por isso é que eu digo que é um privilégio. É um privilégio estar a passar por essa transformação, embora depois haja outros aspetos. Nós temos consciência que estamos sempre a gravar o fim das coisas. E não é fácil gravar o fim das coisas. Tu sabes que estás sempre a gravar o fim, que vais gravar uma pessoa que provavelmente nunca vais conseguir gravar outra vez porque ela vai desaparecer. Eu tenho essa sensação sempre que vou gravar uma coisa ou alguém.


– Deixou Lisboa, onde nasceu, e foi viver para a região Centro. Porquê Serpins?
– Porque a “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” só faria sentido fora de Lisboa e porque descobrimos um local onde o projeto podia ter continuidade. Um centro interpretativo cívico e é o que vai acontecer em breve.


– Um centro interpretativo?
– Sim. “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” é hoje muita coisa, impossível de definir numa coisa só. Tem 10 anos e cada vez grava mais, cada vez tem mais protocolos, cada vez está mais espalhada pelo país. E chega o momento em que é preciso, de certa forma, haver uma transformação no projeto. Era necessário um espaço físico para “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” crescer de outra maneira, para poder receber as pessoas, poder fazer programação cultural contínua e poder mostrar aquilo que faz às pessoas de uma forma mais intimista sem ser na internet. Portanto, concorremos ao projeto “Renovação de Aldeias” e, à partida, o centro interpretativo da música portuguesa vai abrir em Serpins em 2022.


– Porquê “A Música Portuguesa A Gostar dela Própria”?
–  Vivemos numa sociedade onde, claramente, a maior parte das coisas precisa de ter hora marcada. Até para cantar. Vemos isso todos os dias: nos concursos de televisão as pessoas estão todas produzidas, estão afinadas, precisam de cantar daquela forma. E o cantar espontâneo está a desaparecer. O cantar no seu sentido primordial, de as pessoas cantarem para elas próprias, está a desaparecer. Há uma grande falta de autoestima sobre as pessoas que cantam para elas próprias. Acham que aquilo que cantam não vale nada porque não está afinado ou porque não está a produzido. E, portanto, o gostar dela própria é, nesse sentido, o reforço positivo. A música portuguesa faz muito do seu trabalho social através deste reforço positivo, deste exercício de autoestima.


– De que forma o faz?
– Chegamos a um sítio, gravamos uma pessoa e ela diz-nos: “eu não tenho nada para contar aquilo, aquilo que eu conto não vale de nada”. E nós gravamos aquela pessoa, damos o melhor enquadramento, respeitando-a, mantendo o máximo de dignidade, de forma a transformá-la numa espécie de pop star. A seguir agarramos nessa gravação, colocamos na internet, na rádio ou na RTP Memória. E alguém vai ver aquilo – alguém da família ou até um vizinho que a encontra na rua e vai dizer “Vi-te a cantar e estavas tão bem”. E o que acontece? “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” é isso: é estar sempre a fazer o reforço positivo das pessoas, o reforço positivo da humanidade, estimulando a memória e as capacidades cognitivas, criando espaços de encontro e partilha. E isso é muito importante até porque vivemos numa sociedade que diz mal de tudo. É importante as pessoas sentirem que são vistas, que são ouvidas e que essa mensagem passa.


– E que são escutadas.
– Que são escutadas, acima de tudo. Ouvir atentamente é pensar no que não se está a ouvir. Acho que esta noção de estar atento sobretudo ao que não se ouve, define o que eu gosto na música: a surpresa e a imaginação daquilo que não se está à espera. Não há nada mais chato que a música previsível e talvez seja por isso que goste tanto de gravar pessoas que cantam para si mesmas em lugares afastados. Haverá sempre um som diferente que vai compor a textura sonora. E isso para mim é tudo.


O arquivo de Tiago pereira está organizado em www.amusicaportuguesaagostardelapropria.org


Aucíndio Lima e Zézinha Lima, Olho Marinho, Vila Nova de Poiares, 2020 (créditos: A música portuguesa a gostar dela própria)


Em Aldeias, Gouveia, 2014 (créditos: A música portuguesa a gostar dela própria)