Número 25

24 de Setembro de 2022

DESPLANTE

Um homem, uma história incompleta

FREDERICO MARTINHO

Irei contar-vos a história de um homem que passa pelo mundo de pés dançantes e barba por fazer, que não pede de nós mais do que um isqueiro e um pouco de excelência. Ainda hoje não se sabe se o faz para fumar, visto que muitas vezes apenas o recolhia no bolso, ou para colocar fogo na cidade, onde ardem as almas tristes, regadas de chuva, já que não são raras as vezes em que brilha o negro que o ronda. Ainda ninguém me soube dizer de que vive esse pirómano, obcecado por incendiar a noite, nem se se trata de um animal feliz ou triste, se é que os animais são felizes ou tristes (não sei mesmo se somos mais que animais e se as cidades são mais que naturezas). Se optarmos por sermos homens, seres para-lá-do-irracional, pós-primatas, animais políticos, evoluções biológicas ultra-sensíveis, referenciais admiráveis autoimputados, então arriscaria que era de tristeza que se vestia aquele homem tingido de branco na pele e de azul-pólvora nos olhos. Se, por outro lado, desistirmos um pouco de nós, se nos conseguirmos alhear da gama de cores que constrói essa frieza e a tomarmos como uma aura de indiferença, podemos arriscar que é de alegria que se veste aquele homem de rosto seco e olhos nómadas. Nunca saberei o que pensar sobre o homem que desperdiça as horas de vida a cofiar as extremidades da barba e a falar para dentro, enrolando os sons nos pêlos e os pêlos na espuma e a espuma num sorriso que volta a engolir os sons como se as palavras fossem pesadas demais para serem cuspidas. Há coisas que para serem ditas precisam de uma pessoa inteira e esta criatura é das poucas que consegue bolinar entre as mesas e deixar um rasto de destroços e de cravos apenas com um movimento de pés, discorrendo, entre dentes, manifestos inteiros. São poucos aqueles que arrecadam para si uma forma de vida baseada no corpo que carregam e o espaço que ele ocupa, nem mais nem menos do que o necessário para mostrar que o mundo é uma coisa prática quando aprendemos a ser do tamanho das nossas vestes. Prova disso é que nunca nos lembramos das suas roupas, das suas botas, dos seus acessórios — se a elegância acaba quando é notada (Cocteau) então percebemos o porquê de um gigante como este ser tão pouco apreciado. Todo o retrato que a memória expõe são espectros de um homem-nu, como se um manto camuflado o cobrisse, como se a recordação abolisse  tudo o que não é carne ou tecido-morto. Enfim, como se esse homem nos cegasse para o que dele é trivial, fortuito, ultrapassado (como a moda). Há, sim, quem se lembre de umas calças de bombazine ou de um casaco acossado e com alguns furos de cigarro, mas são tudo relatos vagos de pessoas que se esforçam por organizar a memória como artefactos, confiantes de que desta forma estão mais perto de alcançar a verdade do homem, sem se aperceberem que o elencar destas categorias diz mais sobre elas do que sobre esse mistério que assombra a cidade. E a cidade carece desses seres vivos que, como as grandes árvores, ao praticarem a abundância da sua existência, acabam por sabotar o ritmo constante do progresso assente em obrigações, consequências, inevitabilidades. O progresso é incontestável e, portanto, irremediável. Mas nada na biologia nos obrigou a aceitar que vale tudo para nos apetrecharmos de pequenos ou grandes sucessos. Duvido que as árvores questionem a velocidade do Outono ou que os auroques ambicionassem a evolução das espécies, da mesma maneira que duvido que este homem deseje ser mais que um homem. As unhas negras são de quem escava e a magreza uma imagem coincidente com a de uma besta esfomeada. Só os animais mitológicos se assemelham a tamanhos homens e este serve de molde aos grandes excessos com que sobrevivem os heróis. É de rastos que vivem os vorazes de vida, uns atrás dos outros, uns mais que os outros, uns mais atrás que os outros, outros que nem sabem que vão atrás dos outros quando esses, os outros, tropeçam nas próprias pegadas e se deparam com o próprio peso, percebendo a circularidade do rasto infinito da fome e da poesia. Irei contar-vos a história deste homem que passa pelo mundo de pés dançantes e barba por fazer, mas para isso ainda tenho que caminhar muito.