There are more things in heaven and Earth, Luiz, than are dreamt of in your philosophy
Hoje aprendi que a peste mais voraz do mundo é a térmita Mastotermes darwiniensis. Parece uma barata. Mas os biólogos dizem mais. Consideram-nas baratas com uma vida social sofisticada[1]. Algumas pessoas ficaram tristes com a extinção da ordem das térmitas. A estas restou-lhe viver com a despromoção.
Robert Sapolsky, o neurobiólogo primatólogo que nos coloca no lugar de primatas, avisa-nos que sempre que a espécie humana diz que um ser é como uma barata, não devemos esperar coisas boas[2]. Trata-se de uma das metáforas mais perigosas do mundo – a desumanização – que associa a aversão que sentimos pelas baratas a um grupo marcado para abate. Esta metáfora distingue-se da metamorfose, onde Kafka se coloca por inteiro no exoesqueleto duma barata, para pensar como vai para o trabalho no seu novo fato. A metáfora da barata encerra-se sobre si mesma – parte duma emoção humana para chegar a uma emoção humana. Não é um convite para conhecer a vida das baratas, empatizar com elas, ou, se tal não for possível nem desejável pelo asco visceral que provocam[3], pelo menos aprender a respeitá-las. Respecere, nos termos de Donna Haraway[4], é olhar de volta quem tem face, que simultaneamente nos vê e interpreta. É aceitar que está alguém em casa – que a barata é um ser vivo pensante.
Na biologia, o que é um ser não está encerrado. Enquanto bióloga, é uma incerteza com que posso bem viver. Mas confesso que não consigo viver com a indiferença sobre a existência ou não de seres – pior, como se não fizesse diferença se a vida é composta de seres ou por um conjunto de máquinas animadas de qualquer maneira, seja por desígnio externo, por coordenação interna, ou por um programa ou ser psicótico que se ache deus. Ironicamente, a questão fundamental do que é um ser vivo foi resgatada e aprofundada pelos que procuram simular a vida artificial, aliados aos que ainda procuram entender a vida humana nas ciências cognitivas.
Como chegamos a este ponto, em que não interessa se está alguém em casa quando interagimos com um ser vivo? Como podemos pensar que não importa para as ciências sociais?
Fui saber mais sobre a térmita-barata. No norte da Austrália, no seu habitat natural, é um animal discreto. Como animal eussocial tem detalhes fascinantes. O rei e a rainha, quando se enterram para dedicar a sua vida a funções reprodutivas sem nunca mais verem a luz do dia, roem as próprias antenas para ficarem menos sensíveis[5]. Esta interpretação parte claramente de uma perspetiva humanista, numa tentativa quase kafkiana de nos imaginarmos, não a ir para o escritório no corpo de térmita-barata, mas a viver como as térmitas-baratas. Há um esforço de tradução, de imaginação empática, que ao invés de personificar o outro, nos leva a identificar-nos com ela, com a sensibilidade amputada das antenas, com um animal que voa e cujas asas, durante uma parte da sua vida, são maiores do que o seu corpo. Que equivalência é possível para este sentir[6]? Será como a mutilação genital feminina, o corte voluntário do clítoris? Haverá certamente feministas que dizem: “perigo! Naturalização da violência. Somos agora térmitas-baratas”. E têm razão. A capacidade de Mastotermes darwiniensis fundar novas colónias inspirou o entomologista Henry Smeathman a “repatriar” os Black Poor para a Serra Leoa. Temos de ter cuidado com a armadilha, para não reproduzir o mesmo noutro lugar, tornando-nos feministas monárquicas transespecíficas, militantes perpétuas da emancipação sexual de todos os seres interpretados como fêmeas, pelo menos durante parte do seu ciclo, dedicadas a aprender a resistir com as irmãs mais emancipadas.
Há que entrar mais no interior da térmita-barata. Deixar para trás o seu aspeto, e a sua sociabilidade. O segredo está no seu intestino. Mastotermes darwiniensis é o único habitat de Mixotricha paradoxa, um misterioso simbionte de Lynn Margulis que combina os genomas de bactérias distintas. O seu nome quer dizer “ser vivo paradoxal com cabelos de muitos tipos”. Este organismo quimérico composto por uma multidão de outros é essencial ao apetite voraz, ou quem sabe, à fome, da térmita-barata. É com a ajuda destes simbiontes que elas digerem quase tudo. Surgem novamente os cabeçalhos “o que nos ensinam as térmitas-baratas”. O que podemos aprender com elas? Podemos aprender a visão darwiniana de Kropotkin – que os organismos são selecionados pela sua capacidade de cooperar. Que a natureza seleciona os mais fortes, e que mais fortes não são super-térmitas-baratas nietzschianas, mas seres cooperativos que se somam para enfrentar outros grupos com formas de cooperar distintas. A seleção natural já não opera por indivíduos que lutam entre si, mas por “comunidades” de seres que castram a sua sensibilidade individual.
A simbiose é assim uma espécie de centopeia humana – um filme de Legos onde os blocos são seres vivos, e uns subsumem outros, ou subsumem-se a outros, para um bem maior. Como se sentem as nossas mitocôndrias e os nossos endossimbiontes? Sim, as que nos constituem, os 90% de células sem ADN humano? Como pergunta uma pessoa a Lynn Margulis depois de ela expor a sua teoria[7], who’s in charge? A empatia descamba na ironia. É o momento em que, de súbito, a piada é sobre nós. No lugar onde habita este complexo simbionte térmita-barata, a cooperação dos seres humanos é derrotada. Onde Mastotermes darwiniensis domina, não é possível a agricultura intensiva, com irrigação, fertilizantes e fontes de alimento abundantes. As alterações climáticas podem permitir a expansão do território das térmitas, potenciando a libertação de mais dióxido de carbono[8], sendo que nos impedem de libertar o nosso. Talvez o que haja a aprender, enquanto seres humanos, é que não basta submeter o outro, uma vez, num ato isolado. A simbiose é uma incorporação de seres onde todos os envolvidos são transformadas a longo prazo, reproduzida até ao fim da eternidade.
[1] Susan Milius (2018). It’s official: Termites are just cockroaches with a fancy social life, Science News: www.sciencenews.org/article/its-official-termites-are-just-cockroaches
[2] Robert Sapolsky (2010). This Is Your Brain on Metaphors, On the Human, a project of the National Humanities Center: https://nationalhumanitiescenter.org/on-the-human/2010/11/your-brain-on-metaphors/
[3] There may be people who like centipedes… Personally, I would regard such an individual with deep suspicion. I have just petted my cat: “And how is this good little cat beast?” Now what sort of man or woman or monster would stroke a centipede on his underbelly? “And here is my good big centipede!” If such a man exists, I say kill him without more ado. He is a traitor to the human race. (William S. Burroughs, 1987, The Western Lands)
[4] Donna Haraway (2003). The companion species manifesto: Dogs, people, and significant otherness.
[5] Amia Srinivasan (2018). What Termites Can Teach Us, The New Yorker: www.newyorker.com/magazine/2018/09/17/what-termites-can-teach-us
[6] The South African naturalist and poet Eugène Marais described the queen’s fate in “The Soul of the White Ant” (first published, in Afrikaans, 1934): “Although you will apparently be an immobile shapeless mass buried in a living grave, you will actually be a sensitive mainspring. You will become the feeling, the thinking, the seeing, of a life a thousand times greater and more important than yours could ever have become.” (Srinivasan, op. cit).
[7] Homage to Darwin: Evolution debate with Dawkins, Margulis, Brasier and Bell (2009): https://youtu.be/YJ-sZHHx7O0
[8]www.scimex.org/newsfeed/study-finds-termites-may-play-pivotal-role-in-climate-change