Número 7

26 de Junho de 2021

PAIS E MÃES PARA FILHAS E FILHOS

Verão

DR. PICHÓN R.

(Onde Madalena Zuarte, a propósito do verão, se revela uma conhecedora de Ruy Belo.)


— Boa tarde, dr. Pichón. Voltamos hoje a este cenário do bosque do Exploratório, no Parque Verde do Mondego. O verão permite-nos este luxo.

— Boa tarde, Madalena.

— E o tema para esta emissão será…?

— Podemos começar por aí, exatamente.

— Não entendo. 

— O luxo que, para si, é o verão.

— Para si não, depreendo. (Madalena com o ar de quem se interroga porque terá de ser ela a entrevistar o dr. Pichón, com tanta gente no mundo menos complicada e mais interessante)

— Claro que aprecio a vantagem de nos podermos reunir ao ar livre com o vasto auditório. Mas fá-lo-ia na mesma se estivéssemos no outono. E lanço-lhe já este repto: encontramo-nos no outono, neste mesmo lugar.

— Lamento não poder aceitar, doutor. O chefe de redação tem outras ideias para esta rubrica. Mas receio que, se por acaso nos voltássemos a ver, aqui, no outono, me dissesse que “era afinal o verão a única estação”.

— É por isso que é insubstituível, Madalena. Que forma subtil de trazer para este programa um verso de Ruy Belo, o vosso grande poeta das estações… (caloroso)

— O dr. Pichón também nos trouxe a Pizarnik. (conciliadora)

— Pois olhe que nesse poema que citou, o Ruy Belo diz que “chove uma chuva que lhe molha os olhos / e o leva a sentir saudades do inverno”. E conclui exclamando “Quem me dera o inverno”, e afirmando que “uma estação na outra é a autêntica estação.”

—Ah, eu não me estava a referir a esse poema.  Estava a lembrar-me de um outro, bem anterior, do livro O Problema da Habitação, intitulado A mão no arado, em que ele escreve

Feliz aquele que administra sabiamente

A tristeza e aprende a reparti-la pelos dias.”

É aí que ele diz que “é triste no outono concluir que era o verão a única estação.”

— Sim, sim. (feliz)— Agradeço-lhe a precisão. Estava a confundir com Nos Finais do verão, recorda-se? Do livro Toda a Terra… do “tempo das cassetes”, como diz a sua amiga Rosa Oliveira. Aí ele diz literalmente que, enquanto escreve, ouve uma fita onde se encontra gravado o Requiem de Mozart.

— Rosa Oliveira, a autora de Cinza? Minha amiga? (surpreendida)

— Cultora do Verão, como a Madalena. (com falsa inocência)

— Continuemos, doutor. Estava a correr tão bem. Gosto muito de Cinza, mas nunca me cruzei com Rosa Oliveira.

— Não se preocupe. Eu simplesmente recordo que nesse grande poema que o Luís Miguel Cintra tão bem dizia, o Ruy Belo não faz propriamente o elogio do verão. É do fim do Verão, que se trata. Ou, nas palavras dele, inesquecíveis e perturbadoras, hipertextuais, como se diz agora, fala da “implacável destruição do verão”, de “alguma coisa que, sem remédio, acabou”, da “criança ameaçada pelo fim do verão.”

(silêncio de Madalena, pausa, o dr. Pichón continua).

— De certa maneira é isso, sim. É abusivo invocar Ruy Belo a propósito da pretensa supremacia do verão. O que o inquieta, no verão, é “alguma coisa que passou para sempre passou irremediavelmente para sempre”. Não é o tempo, mas a passagem do tempo. A lenta deslocação do lugar do pôr-do-sol, por exemplo. E nesse poema, algumas descrições levantam a possibilidade de o encanto do verão não ser unânime. Por exemplo, quando ele fala “do ruidoso convívio do verão”. Permita-me que não me entusiasme com “o ruidoso convívio do verão”, Madalena.

— Tão snob, doutor! (afogueada) —Lamenta a democratização das praias?

— Pelo contrário. Um velho amigo que já não está entre nós, o catalão Manuel Vásquez Montalbán, contou que as famílias de trabalhadores rurais, quando ele era criança, vinham de Cartagena ou de Múrcia, no Sul de Espanha, para o mar Menor, aos domingos. Aí cozinhavam o prato de arroz a que chamam caldero, especialidade dos pescadores da zona. E depois, nos anos da sua juventude, uma parede de betão cresceu entre o mar e a terra, e as famílias de populares foram substituídas pelos turistas em veraneio.  O caldero, pelo frango assado com batatas fritas de pacote. Paralelamente a isto, a massificação do turismo. Ou pior ainda, a substituição do viajante pelo turista. Flaubert dizia que se envergonhava de ser turista. E o Verão, Madalena, é a estação do turismo, das multidões a planetar, num mundo visto como um conjunto comunicante de parques temáticos, onde a lei da natureza é substituída pela lei da reprodução rápida dos investimentos.

— Já no Inverno… as disneylândias tornam-se museus. (ligeiramente irritada)

— No Inverno há uma retração da indústria turística. As grandes estações balneares desertificam-se. Baixam os preços.  As regiões de montanha e planalto, muito mais ecosustentáveis e renováveis, passam a ser o alvo de substituição da indústria predadora do turismo de massas. Mas têm maior capacidade de absorção das multidões e dos seus detritos. No Inverno é possível algum silêncio, solidão, um contacto mais respeitoso com a natureza.

— E a luz?  (desejosa de mudar de assunto) —Não é sensível à luz do Sul? Já viu pinturas de Gauguin em França e no Tahiti? Ou de Van Gogh nos Países Baixos ou no Sul de França

— Sim. Gosto de ambas. (condescendente)— Mas se me fala da luz, dir-lhe-ei que o excesso de luz cega. E já que se lembrou de Ruy Belo, no verão as luzes que mais impressionam o poeta, na sua casa da Praia da Consolação, são o amarelo da manhã e o amarelo torrado, “pouco antes de passar o testemunho à sombra avassaladora da noite”.

— As crianças adoram o verão. Não o toca a esta realidade?

— Claro que sim. Adiro ao entusiasmo pelo exterior. E gosto das grandes praias de Portugal, com areais brancos, rochas, paredões, cabedelos, enseadas, dunas… (gesto de impaciência de Madalena) — Tudo isso é extremamente importante na infância. Mas há um momento, no fim da infância, em que a sequência das estações é iniludível. As crianças percebem que o maior dia do ano, o solstício de junho, ocorre afinal muito cedo, no início das férias escolares. E que a partir daí começa o inexorável declínio do verão. Só seres muito jovens, ou muito inocentes, é que conservam, ano após ano, a confiança ingénua no verão. A ilusão de que tanta alegria, tanto esplendor, podem perdurar. A canção Estate, que João Gilberto e outros cantavam, era exatamente sobre isso (Madalena pensa que o técnico de som da Rádio Osso podia ser um pouco mais atento. E inesperadamente começa a ouvir-se Odio l’Estate na voz de Roberta Gambarini)

La neve coprirà tutte le cose
E forse un po’ di pace arriverà

(e o dr Pichón conclui) —Não se aguenta a Revolução permanente. Depois da Festa vem o fim da festa. Depois da ovação e dos encores, fecham-se as cortinas do palco.

— A sua resistência ao verão terá uma base… sensorial?

— Há crianças que se sentam na praia e deixam a areia escorrer entre os dedos das mãos. E há outras que não suportam o seu contacto. Há quem gatinhe para o mar. E quem se assuste e agarre aos pais. Há quem adore o contacto da água salgada. E quem não chegue à rebentação.  Mas não estão apenas em causa aspetos sensoriais. Há fatores ligados à idade, ao temperamento, ao cuidador, à ligação com o cuidador. Há o contexto, como explicar… a encenação da coisa, o momento, o som ambiente.

— O verão não é apenas a praia, dr. Pichón. (pedagógica)—  São os dias longos, as roupas leves, andar descalça, as frutas de verão, férias, reencontrar amigos.

—  A canícula, a vilegiatura, a sede, o suor, os insetos na máxima força reprodutiva. (o dr. Pichón prolonga a frase de Madalena com a mesma entoação e cadência)

— A sede, o suor e os insetos vibrantes?! Também gosto. Tudo isso transpira erotismo. (Madalena esticando a corda, mas com convicção)

— Obrigado, Madalena. Sentimos, de acordo com a nossa história pessoal de vida, com as nossas experiências, com a nossa diversidade biológica. Não podemos estar em continuidade perfeita com a natureza. A continuidade total é a morte. Tem de existir sempre uma tensão, um desequilíbrio, um desajustamento. Mas o grau e a amplitude desse desajustamento traduzem a nossa irredutível dessemelhança.

—Acabamos por hoje, dr. Pichón. (Madalena acaba um pouco abruptamente. Mas como se tivesse dado conta disso, recomeça) — Proponho que fiquemos um pouco em silêncio. E que os nossos ouvintes nos acompanhem. Que nos interroguemos, neste princípio do verão sobre que é feito “dessa pausada estação”, e “onde é afinal o sítio sossegado do verão”?

— Assim seja.

(mais uma surpresa da produção: fica a ouvir-se a voz inconfundível de Luís Miguel Cintra a ler A Mão no Arado, um dos poemas a que se fez alusão no programa)



Agradecimentos: A produção agradece a Maria Manuela Oliveira, que gentilmente cedeu a canção Odio l’Estate, de Roberta Gambarini, e a Rosa Oliveira pela cassete com o Requiem de Mozart, na versão de 1972 da The English Chamber Orchestra, com Daniel Barenboim. Rosa Oliveira cunhou a expressão “tempo das cassetes” para designar os longínquos anos 70 do século XX, em que o meio de reprodução de música gravada era a cassete, um artefacto retangular com uma fita magnética que rodava num leitor. E ainda “tempo dos cartuchos”, uma obscura década anterior.