Número 21

5 de Março de 2022

O LADO INCERTO

27 de Fevereiro, 2022, 07:35

ANA PAULA INÁCIO

Queria pássaros vieram os mísseis

de Kharkiv na TV do vizinho do 2.º Dto

e os gritos da sua voluptuosa mulher

que era domingo e ainda muito cedo.

Enquanto a manhã entra a mil

a luz lambe-me

vigorosa amante fiel

afio o ouvido perdigueiro

contra o andar do coração abaixo

onde me refugio em cada silêncio

conseguido entre o uso alternado

de máquinas domésticas

e noto que o vidro do espelho da cómoda

(fita-me surpreendido)

merecia já ser substituído.

Enquanto releio o caderno de 1991

«A guerra começou

o meu avô morreu

e vai a meio a malha vermelha

que te darei pelo Natal.»

e afinal não cheguei a oferecer-ta

continuo a tricotá-la

a vermelho

numa sucessão de natais

sem perceber que verdadeira forma lhe dar

a malha sobrevivendo

como o manto do Mestre agostiniano

e eu sem qualquer vocação

perfil ou skill para Penélope contemporânea.

Enquanto o café não sobe

na cafeteira de 1989

e os meus dedos

muito mais do que a minha boca

pedem um cigarro por onde arder.


Ilustração de Diogo Bessa