Número 41

13 de Julho de 2024

THESE FOOLISH THINGS

#3

LUÍS JANUÁRIO

O prato de cerâmica azul

Na sala de jantar da minha infância havia uma calha fina de madeira escura, uma espécie de carril, colocado bem alto nas paredes e que servia como expositor de pratos. Uma pequena travessa mostrava uma jovem mulher libertando-se dos braços de um homem com uma legenda que dizia Une Tentative. Havia dois pratos com a cruz gamada que o meu pai comprara num leilão do consulado alemão, no Porto, depois da guerra. Por vezes, se o jantar demorasse algum tempo e o meu pai desatasse a veia sonhadora, ouvíamos a história de cada peça. E acabava apontando para o prato que ocupava um lugar central. — É o único que vale alguma coisa, cerâmica azul da dinastia Ming — dizia com ar sonhador.

Aquele era o tom que apreciava nele. Eu percebia que não estava a exagerar e que se tratava de peças valiosas.

Umas férias de Páscoa ficámos sozinhos em casa, a minha irmã e eu, porque o meu pai saiu do país para uma feira e a minha mãe acompanhou-o. Estávamos ao cuidado da Etelvina, uma empregada de confiança. A sala de jantar dava para um pátio onde eu jogava futebol, sem grande técnica mas muita energia. E numa devolução do esférico para casa, a Etelvina, debruçada na janela, não segurou o couro que, caprichosamente, veio quebrar o prato de louça da China.

Chorei copiosamente.

Alargamos o espaço entre os pratos para não se notar o acidente.

Uma tarde, ainda antes do regresso deles, fui sentar-me atrás das cortinas da sala. O meu sofrimento era tal que estava pronto para os maiores sacrifícios. Tinha frequentado as aulas da catequese e da preparação para a comunhão das quais fora convidado a retirar-me quando perceberam que não era batizado. Argumentei que os meus pais tinham autorizado a frequência de qualquer culto, o que não colheu, porque não apreciaram a ideia de que outros cultos estivessem disponíveis. Mas eu sabia qual o deus que estava de serviço na zona e como havia de me dirigir a Ele. Rezei credos, pai nossos e salvé rainhas, mãe de misericórdias. Não pedi a deus que aparecesse. Apenas que fizesse aparecer o prato, um milagre menor, um restauro, uma coisa de nada para um ser omnipotente, omnisciente e que criara o céu, a terra e as viagens de negócios. Ao fim de um tempo de mágoa e arrependimento tão profundo que ainda hoje, ao recordá-lo, me assombra, afastei a cortina à procura do prato, no centro do expositor.

Não voltara. Ou deus não me ouvira, o que me parecia difícil de tal forma o meu apelo fora genuíno e poderoso, ou o pedido fora indeferido pela minha condição de não-batizado nem batizando. Ou deus não existia.

Nunca mais na vida Lhe formulei outro pedido assim. E nunca mais encontrei em mim tanto fervor para O invocar.


Na Croisette (Heaven, Talking Heads)

Chego tarde ao autor desta

canção

ou a este

escritor

E sinto que perdi a sua obra

Não serei capaz de o ler sabendo-o

morto

incapaz de dar uma entrevista

uma conferência

aceitar um convite para

uma tournée

que por acaso passa em Barcelona

Ou em Marco de Canaveses

De escrever a obra

que esclarece todas as outras

e assim lerei

à luz da atualidade da sua escrita

Também não terei tempo

para que se torne um clássico

sempre novo como Dickens

ou Wilde

A verdade é que chego tarde

como acontece

agora tantas vezes

Não posso apagar esta cena

Estou a correr na passadeira aeróbica

vermelha

como no festival em Cannes

na Croisette

Penso no tempo presente

e no tempo futuro

E vejo

numa revelação

que só existe o tempo passado

Uma revelação é algo

que recebemos num sonho

Queremos comunicar

porque nos parece

que ninguém se apercebeu

e no entanto é importante

salvador talvez

se não da humanidade

ao menos de uma pessoa

particularmente ameaçada

ou animal

ou coisa

E não conseguimos falar

ou ser ouvidos

Viro-me na passadeira

tento puxá-la para captar o passado

ou um momento do passado

e vejo

rostos

Embora apenas reconheça o rosto

da minha mãe

numa aldeia onde trabalhou

entre os castanheiros

todos ardidos

alguns anos depois

Mas não consigo

puxar a passadeira com a força

que contrarie o seu movimento

para a frente

a 12 kms por hora

um exagero para a minha forma atual

Não consigo ir para o passado do passado

nem parar o desenrolar contínuo das coisas

de forma a torná-las

inteligíveis

Volto-me outra vez para a frente

e vejo uma criança aterrorizada

pela catequese

e pela ideia do inferno

Explico-lhe que o inferno acabou

no século XV

XX corrige a mãe

o que para a criança é irrelevante

espantada com a extinção do inferno

quando acabou de o conhecer

O inferno acabou

e o Céu

é o nome de um bar

onde nada acontece

diz o David Byrne

Mas

se prestarmos atenção

está a tocar a minha canção favorita

que é precisamente esta

no Carnegie Hall em 2015

se não me engano

É então que ouço Passos

O Passos de Beckett

O ruído das máquinas de guerra

dos nossos inimigos

Exércitos em movimento

Drones

tea partys

para jovens e velhos prosélitos

que em breve cegarão

com o sangue dos vencidos

E um ruído imenso de media

sobrepostos

cidades esventradas por obras públicas

a poderosa indústria

da guerra

Os gritos dos corpos queimados

nos abrigos

as vítimas colaterais

os olhos assustados no escuro

É o fim

Corro na Croisette

com a esperança de te encontar

e de fazermos algo de sublime

contra a parede deste mundo que acaba

Como fodermos em pé

O teu alto corpo desenhado no muro do mundo

levantado pelo púbis

os pulsos nas minhas mãos

Ou vice versa

 

I’m not my Season (Fleet Foxes)

Votas sem convicção

numa garagem do Rato

Não tens representação política

Os teus poetas não vão a votos

Martelam-te as têmporas

compassos que não entendes

e a imagem de um pântano

onde não crescem senão líquenes e musgo

e que pode ser o Brandemburgo medieval

antes dos Hohenzollerns

Esta não é a tua estação


Das coisas más do mundo


Voo da Tap: Delayed

O voo da TAP está adiado

Delayed

Sem hora

É véspera de Natal

e no aeroporto da cidade francesa

as lojas fecham uma após a outra

penduram cartazes

dizendo que

Reabrem

Depois das Festas

Há pouca gente na sala de embarque

E estão alheias às informações

em inglês

ou em francês

É um voo para portugueses

com destino a Portugal

Até o bar fechou

A funcionária da companhia responde mal

enquanto olha para um ponto

atrás do reclamante

Em todos os painéis o voo da TAP

Delayed

está a ficar sozinho

Delayed

Mas o pior é não teres ninguém

à tua espera

no destino

(versão 2:

Mas o pior é que quem te espera

Não é quem tu querias

No destino)


La Chimera, Alice Rohrwacher: crítica de cinema

Sair do cinema no grande centro comercial

El Corte Inglês de Lisboa

por exemplo

não reconhecer corredores

lojas fechadas taipais descidos

procurar a saída

voltar atrás

constatar que as nove pessoas da sessão da noite

se esfumaram

caminhar ao longo do corredor mais largo

no meio de cheiros desconhecidos

que pousaram no espaço

habitualmente atravessado

pelas pessoas em trânsito

encontrar a porta ao fundo

fechada

e pensar

vai-se dormir encostado à farmácia

ou à loja das flores

talvez os padeiros cheguem mais cedo

ou um guarda noturno faça rondas

mas pior de tudo é perceber

que a mulher

com quem partilhaste a sessão

e esta corrida

está silenciosa e levemente hostil

não sabes se a ti

se ao filme

cujas cenas ainda ressoam

no teu peito atormentado