O prato de cerâmica azul
Na sala de jantar da minha infância havia uma calha fina de madeira escura, uma espécie de carril, colocado bem alto nas paredes e que servia como expositor de pratos. Uma pequena travessa mostrava uma jovem mulher libertando-se dos braços de um homem com uma legenda que dizia Une Tentative. Havia dois pratos com a cruz gamada que o meu pai comprara num leilão do consulado alemão, no Porto, depois da guerra. Por vezes, se o jantar demorasse algum tempo e o meu pai desatasse a veia sonhadora, ouvíamos a história de cada peça. E acabava apontando para o prato que ocupava um lugar central. — É o único que vale alguma coisa, cerâmica azul da dinastia Ming — dizia com ar sonhador.
Aquele era o tom que apreciava nele. Eu percebia que não estava a exagerar e que se tratava de peças valiosas.
Umas férias de Páscoa ficámos sozinhos em casa, a minha irmã e eu, porque o meu pai saiu do país para uma feira e a minha mãe acompanhou-o. Estávamos ao cuidado da Etelvina, uma empregada de confiança. A sala de jantar dava para um pátio onde eu jogava futebol, sem grande técnica mas muita energia. E numa devolução do esférico para casa, a Etelvina, debruçada na janela, não segurou o couro que, caprichosamente, veio quebrar o prato de louça da China.
Chorei copiosamente.
Alargamos o espaço entre os pratos para não se notar o acidente.
Uma tarde, ainda antes do regresso deles, fui sentar-me atrás das cortinas da sala. O meu sofrimento era tal que estava pronto para os maiores sacrifícios. Tinha frequentado as aulas da catequese e da preparação para a comunhão das quais fora convidado a retirar-me quando perceberam que não era batizado. Argumentei que os meus pais tinham autorizado a frequência de qualquer culto, o que não colheu, porque não apreciaram a ideia de que outros cultos estivessem disponíveis. Mas eu sabia qual o deus que estava de serviço na zona e como havia de me dirigir a Ele. Rezei credos, pai nossos e salvé rainhas, mãe de misericórdias. Não pedi a deus que aparecesse. Apenas que fizesse aparecer o prato, um milagre menor, um restauro, uma coisa de nada para um ser omnipotente, omnisciente e que criara o céu, a terra e as viagens de negócios. Ao fim de um tempo de mágoa e arrependimento tão profundo que ainda hoje, ao recordá-lo, me assombra, afastei a cortina à procura do prato, no centro do expositor.
Não voltara. Ou deus não me ouvira, o que me parecia difícil de tal forma o meu apelo fora genuíno e poderoso, ou o pedido fora indeferido pela minha condição de não-batizado nem batizando. Ou deus não existia.
Nunca mais na vida Lhe formulei outro pedido assim. E nunca mais encontrei em mim tanto fervor para O invocar.
Na Croisette (Heaven, Talking Heads)
Chego tarde ao autor desta
canção
ou a este
escritor
E sinto que perdi a sua obra
Não serei capaz de o ler sabendo-o
morto
incapaz de dar uma entrevista
uma conferência
aceitar um convite para
uma tournée
que por acaso passa em Barcelona
Ou em Marco de Canaveses
De escrever a obra
que esclarece todas as outras
e assim lerei
à luz da atualidade da sua escrita
Também não terei tempo
para que se torne um clássico
sempre novo como Dickens
ou Wilde
A verdade é que chego tarde
como acontece
agora tantas vezes
Não posso apagar esta cena
Estou a correr na passadeira aeróbica
vermelha
como no festival em Cannes
na Croisette
Penso no tempo presente
e no tempo futuro
E vejo
numa revelação
que só existe o tempo passado
Uma revelação é algo
que recebemos num sonho
Queremos comunicar
porque nos parece
que ninguém se apercebeu
e no entanto é importante
salvador talvez
se não da humanidade
ao menos de uma pessoa
particularmente ameaçada
ou animal
ou coisa
E não conseguimos falar
ou ser ouvidos
Viro-me na passadeira
tento puxá-la para captar o passado
ou um momento do passado
e vejo
rostos
Embora apenas reconheça o rosto
da minha mãe
numa aldeia onde trabalhou
entre os castanheiros
todos ardidos
alguns anos depois
Mas não consigo
puxar a passadeira com a força
que contrarie o seu movimento
para a frente
a 12 kms por hora
um exagero para a minha forma atual
Não consigo ir para o passado do passado
nem parar o desenrolar contínuo das coisas
de forma a torná-las
inteligíveis
Volto-me outra vez para a frente
e vejo uma criança aterrorizada
pela catequese
e pela ideia do inferno
Explico-lhe que o inferno acabou
no século XV
XX corrige a mãe
o que para a criança é irrelevante
espantada com a extinção do inferno
quando acabou de o conhecer
O inferno acabou
e o Céu
é o nome de um bar
onde nada acontece
diz o David Byrne
Mas
se prestarmos atenção
está a tocar a minha canção favorita
que é precisamente esta
no Carnegie Hall em 2015
se não me engano
É então que ouço Passos
O Passos de Beckett
O ruído das máquinas de guerra
dos nossos inimigos
Exércitos em movimento
Drones
tea partys
para jovens e velhos prosélitos
que em breve cegarão
com o sangue dos vencidos
E um ruído imenso de media
sobrepostos
cidades esventradas por obras públicas
a poderosa indústria
da guerra
Os gritos dos corpos queimados
nos abrigos
as vítimas colaterais
os olhos assustados no escuro
É o fim
Corro na Croisette
com a esperança de te encontar
e de fazermos algo de sublime
contra a parede deste mundo que acaba
Como fodermos em pé
O teu alto corpo desenhado no muro do mundo
levantado pelo púbis
os pulsos nas minhas mãos
Ou vice versa
I’m not my Season (Fleet Foxes)
Votas sem convicção
numa garagem do Rato
Não tens representação política
Os teus poetas não vão a votos
Martelam-te as têmporas
compassos que não entendes
e a imagem de um pântano
onde não crescem senão líquenes e musgo
e que pode ser o Brandemburgo medieval
antes dos Hohenzollerns
Esta não é a tua estação
Das coisas más do mundo
Voo da Tap: Delayed
O voo da TAP está adiado
Delayed
Sem hora
É véspera de Natal
e no aeroporto da cidade francesa
as lojas fecham uma após a outra
penduram cartazes
dizendo que
Reabrem
Depois das Festas
Há pouca gente na sala de embarque
E estão alheias às informações
em inglês
ou em francês
É um voo para portugueses
com destino a Portugal
Até o bar fechou
A funcionária da companhia responde mal
enquanto olha para um ponto
atrás do reclamante
Em todos os painéis o voo da TAP
Delayed
está a ficar sozinho
Delayed
Mas o pior é não teres ninguém
à tua espera
no destino
(versão 2:
Mas o pior é que quem te espera
Não é quem tu querias
No destino)
La Chimera, Alice Rohrwacher: crítica de cinema
Sair do cinema no grande centro comercial
El Corte Inglês de Lisboa
por exemplo
não reconhecer corredores
lojas fechadas taipais descidos
procurar a saída
voltar atrás
constatar que as nove pessoas da sessão da noite
se esfumaram
caminhar ao longo do corredor mais largo
no meio de cheiros desconhecidos
que pousaram no espaço
habitualmente atravessado
pelas pessoas em trânsito
encontrar a porta ao fundo
fechada
e pensar
vai-se dormir encostado à farmácia
ou à loja das flores
talvez os padeiros cheguem mais cedo
ou um guarda noturno faça rondas
mas pior de tudo é perceber
que a mulher
com quem partilhaste a sessão
e esta corrida
está silenciosa e levemente hostil
não sabes se a ti
se ao filme
cujas cenas ainda ressoam
no teu peito atormentado