Número 42

10 de Agosto de 2024

#4

Wisleva Szymborska

Entre duas ondas perpassou um poema

Sussurrando

Logo a seguir esquecido


Gide, Mailer

André Gide escreveu: “Não me entendam demasiado depressa”.

Norman Mailer escrevia, no final dos anos 50, uma crónica no Village Voice chamada : “Quickly: A Column for Slow Readers”.


Ao balcão

A orquestra silenciosa dos cozinheiros, o maestro, a dos risotos, o dos bifes, o circulante, troca bilhetes: 12-bife-mal; 4-carpaccio; 3-bacalhau.

Poucas palavras.

Estão virados para as bancadas  e quando se movem com grandes caçarolas quentes, dizem:

Costas.


Barrinha de Mira

Havia o mar, a praia, as dunas e o pinhal com as barracas dos campistas. Depois a estrada, uma reta que vinha do norte e levava às praias de Quiaios, quilómetros de terras arenosas e desertas, gândaras e gafanhas. Mas na praia de Mira, do outro lado da estrada, o pinhal acabava na Barrinha. E havia uma pequena baía meio escondida, com uma prancha de saltos erguida por carpinteiros locais. Tinha um cinto torácico com alças ajustáveis, verde desbotado, pneumático, com o qual boiava. Era mais seguro que as boias habituais e dava maior liberdade de movimentos. Naquela tarde o meu pai disse que podia tirar o cinto e entrou na água, até onde se perdia o pé. E então percebi que nadava. Não sabia ainda os diversos estilos nem o nome deles, sequer. Mas lembro-me dessa tarde em que comecei a nadar, na barrinha de Mira, nas águas quentes da ria. O meu corpo lembra-se da impulsão da água, da leveza dos movimentos, do orgulho e da excitação, de que me movia cada vez com maior controle e mais segurança, inicialmente para os braços abertos do meu pai no meio da  piscina natural  e depois em todas as direções. Mais tarde, por várias vezes, vi crianças a dar os primeiros passos, e sabia o que estavam a sentir.


Edição bilingue

Em 1998 a editora Relógio D’Água lançou o livro de Wislawa Szymborska, Paisagem Com Grão de Areia. A tradução, diretamente do polaco, é da autoria de Júlio Sousa Gomes.

Em 2023 as edições do Saguão publicaram, da mesma autora, Um Inconcebível Acaso, com tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

Ambas as edições, discretas e lindas, são bilingues.

A quantas pessoas servirá esta possibilidade de avaliar a correção da tradução com o cotejo da versão original?

O ChatGPT diz que somando a comunidade portuguesa na Polónia à comunidade polaca em Portugal, partindo do princípio de que aprenderam a língua do país de acolhimento e considerando ainda estudantes e trabalhadores em intercâmbio e de cidadãos bilingues por casamento misto ou famílias multinacionais o seu número é pequeno, provavelmente da ordem das centenas .

Como diz a Wislawa, a minha irmã não escreve poemas (…) a nossa mãe e o nosso pai, o marido da minha irmã nunca escreveram poemas, nem provavelmente irão escrever e 

toda a sua obra são postais ilustrados escritos nas férias

com frases onde promete todos os anos a mesma coisa

que,  quando voltar

vai contar,

 tudo-tudo,

tudinho.

Provavelmente nunca leram poemas, nem os magníficos poemas da Wislawa.

Nem este poema.

O mesmo acontece com a minha família, onde há quatro gerações só a minha mãe escreveu poemas. E onde ninguém sabe polaco.

A quem serve então esta edição bilingue, para lá do círculo restrito das famílias dos tradutores, presumindo que se lhes não aplica a regra descrita por Wislava Szymborska?

As edições de poesia em Portugal poucas vezes indicam as tiragens, como é o caso da Relógio d’Água, proprietária de uma das melhores coleções.

Assim, embora não existam dados, como ressalva o ChatGPT, é legítimo pensar que das centenas de bilingues luso-polacos só alguns leem poesia, e quase nenhum Wislawa Szymborska.

Para dar algum sentido a estas edições, comprei dois exemplares de cada. Também por amor a Wislawa, de quem aqui nunca escreverei o nome corretamente, por me faltar no teclado o “l cortado”, que é pronunciado aproximadamente como o “w” inglês. 

E com a secreta esperança de lhes encontrar um leitor. Mas ainda não me apareceu nenhum. Muito menos bilingue. Nem postais de férias já recebo.


Maria Manuel Viana

Hoje enquanto estava a ler um livro fantástico que me recomendaram e comprei na Amazon por 1,28 €, edição Kindle, senti um nó que primeiro parecia um nó normal, daqueles nós histéricos da garganta, tipo bola que não sabemos se nos vai fazer parar a respiração ou apenas vomitar. Mas depois, à medida que ia progredindo na leitura, o nó deslocou-se pelo esófago abaixo até se tornar um nó do peito, aquele aperto de quando se vê o milagre da cela 7 e não se consegue chorar, rebentar em lágrimas, soluçar, e não percebermos porque se chora, de que se chora, do que sentimos falta, que tipo de consolo precisamos. E quando a vontade reprimida de chorar passou, e já o Kindle se tinha desligado da nuvem, dei conta que o nó do peito se tinha desatado e que estava agora com um interessante nó sensorial porque não ouvia nada, nem os pássaros do 3º andar, em regra tão ativos àquela hora, não via nada senão um clarão uniforme, uma luz composta da fusão de muitas cores, como quando, sem querer, fitamos o sol. Não sentia nada, dormente, dormente. Nem o cheiro do jasmim negro, da água de Prada, a mártir. Era um nó sensorial cognitivo, nem agradável nem desagradável, nem zen nem pilatos. Zen é a ausência de questões sobre o mundo, a aceitação das coisas tal como elas parecem ser, incognoscíveis. Pilatos é a questão que o governador fez a Cristo e à qual, estranhamente ele não respondeu, o que não devemos estranhar, pois nenhuma das grandes questões foi até agora respondida. Estava eu, resumindo, aturdido pela sequência de três nós moventes, de pé, com o Kindle ao pendurão e olhando com os olhos cegos pela luz um ponto na linha de fuga do meu apartamento. E nesse momento vi, ou ouvi a resposta ao sentido da vida. Sem que tivesse perguntado. Não foi sussurrada, nem escrita, nem projetada nas paredes brancas da sala. Qual o sentido da vida humana? — não perguntei. E a resposta aconteceu em mim, com claridade. Em mim, num lugar extenso e impressionável do corpo interior, mais dentro do que as mucosas, ressonando, reverberando, vibrando em mim. E sabendo a resposta, continuei o dia.


Lugares tão perigosos como as bicicletas de Russel,

onde as mulheres deviam ser particularmente vigiadas:

Empurrando o carrinho de bebé

Arrumando a cozinha

Estendendo roupa

Brunindo

Atividades domésticas que impliquem amarrar lenço à cabeça

Lendo


Camisola nº4

O Real estreia a camisola nº4, desenhada por Yohji Yamamoto. Toda em roxo com uma mancha sobre o ombro direito e outra no flanco oposto, como se o jogador se tivesse sujado na relva lamacenta de um jogo de inverno muito disputado. Eder Militão vai entrar aos 90 minutos, para jogar os três do prolongamento e apesar de não ter caído, já ostenta a mancha. E quando Rodrygo marca o seu segundo tento, que confirma a vitória sobre o Athletic, a câmara foca o calção Y-3, as meias Y-3 e os braços abertos esperando o abraço de Bellingham. É então que se percebe que a mancha é uma rosa cinzenta, pétalas e um caule, algumas folhas e no flanco a assinatura do criador.