O chapéu Borsalino
No Natal de há 15 anos a minha irmã deu-me um chapéu Borsalino castanho. Perdi-o este ano, depois de um uso intensivo. Era uma das peças do corpo que mais apreciava. Leve, podia usá-lo em qualquer estação. Não era o Fedora com a aba levantada atrás e a gebada funda, como os celebrizados nos filmes de Jacques Deray. Nem o Grand Prix de 1900, cuja aba tem um debrum demasiado visível. Nem tão curta como o Trilby. Era único, vinha numa chapeleira cilíndrica muito elegante, usei-o em várias ocasiões e agora perdi-o. Sei que não o posso substituir. Porque já vi vários catálogos, e porque, maldição ou dádiva, nenhuma peça do corpo é substituível com o que arrasta de vias aferentes, circuitos associativos, neurotransmissores e projeções corticais. Perdi-o, tenho de me habituar a esta ideia triste.
A minha irmã devia saber. Nunca mais me deu nada. Nem no Natal.
Na rua de S. Filipe Néri
Depois de almoço descemos a pé a rua de S. Filipe Néri, uma rua estreita que prolonga a Artilharia 1 até ao Rato. Os passeios são acanhados, está calor embora não seja excessivo, uma mulher está encostada à parede. À nossa frente, como se procurasse uma posição em que resumisse o corpo para a nossa passagem. E quando nos aproximamos, senta-se numa dessas caixas dispersas pela cidade e que talvez tenham pertencido aos serviços municipais de eletricidade. Quando passo por ela vejo que é magra e pequena, tem os cabelos curtos, finos, muito brancos, há velhos assim, que conservam o seu frágil corpo juvenil e de quem só quando estamos muito próximos percebemos a idade, nas mãos e na pele da face. Vejo também os tornozelos muito finos. Atravessa-me o pensamento de que talvez seja, apenas, um pouco mais velha do que eu. A Luísa precedia-me e está parada, virada para trás, parece querer dizer-me algo. Só nesse momento me ocorre que talvez a mulher esteja em dificuldades. Volto-me, hesito em aproximar-me demasiado e pergunto se podemos fazer alguma coisa, se precisa de alguma ajuda.
Ela está a chorar. Ou começa a soluçar, ao tentar responder. Não precisa de nada, repete. E eu sinto que devo fazer alguma coisa, mas não sei exatamente o quê. A rua está deserta, não se vê nenhum movimento dos prédios próximos e esta mulher está sentada, a chorar e a dizer numa voz clara e surpreendentemente juvenil, que não é nada, não precisa de nada.
Ficamos assim algum tempo, paralisados, até que recomeço a descer e a Luísa está a chorar silenciosamente. E vamos assim até ao semáforo que impede que atravessemos a praça, a chorar sem saber bem porquê.
Resgate no supermercado
Na fila do supermercado de bairro, de manhã cedo, ele dispõe as compras na passadeira e vê a empregada da caixa a dar o troco ao cliente que o antecede. Ela é franzina, pálida e mexe-se com alguma dificuldade, o que pode ser um erro de apreciação dado o espaço exíguo em que opera não permitir outro tipo de movimentos. Quando acaba a operação e o cliente se afasta, baixa-se para apanhar algo nesse lugar entre as caixas de pagamento dos supermercados onde imobilizam as operadoras. E fica assim, incapaz de desfazer o agachamento.
Ele debruça-se sobre a passadeira e estende um braço na direção dela. Há uma pausa em que ela olha com algum espanto, como se não fosse normal ajudar alguém com dificuldades a levantar-se. Depois sorri, estende os braços rodeando o pulso e iça-se devagar mas com firmeza. É leve e mais ágil do que parece. Sorri e diz uma piada sobre a idade, que soa mal porque tem menos vinte anos do que ele. Vinte e três. Deseja-lhe bom fim de semana, o que, atendendo a que são oito da manhã de sexta-feira é um desejo de longo prazo, valioso, como o seu sorriso de resgatada.
Abrir as janelas
Eles costumavam abrir as janelas, arejar o quarto e fazer a cama juntos, vigorosamente, depois de foder.
Agora não fodem mas continuam a ter muito prazer em abrir as janelas, arejar o quarto e fazer a cama juntos, vigorosamente.
Curso de Escrita Criativa
Para tentar uma escrita feminista lava-se profundamente com o gel de banho Dove Renewing cuja embalagem tem estampada uma rosa enjoativa e custa quatro euros e trinta cêntimos, muito mais barato que o curso de escrita criativa da Casa Pessoa.
Ela mandou-lhe uma mensagem que dizia “Estou fodida consigo” e desde aí ele não pensa em outra coisa.
Instrução
O Manual de instruções da máquina de café diz que a operação de limpeza (clean) se realiza carregando no botão três vezes durante dois segundos, quando a luz fica fixa. Ele consegue carregar três vezes num segundo, três vezes em três segundos, uma vez num segundo e até uma vez em três segundos. Mas até agora nunca conseguiu limpar (clean) a máquina de café.
Um gasto terrível de energia
A máquina de lavar e secar roupa demora imenso tempo a secar. Isto podia não ter importância, se o ruído, com o tempo, não se tornasse insuportável.
Os Hohenzollern de Brandemburgo
João Sigismundo, filho de Joaquim Frederico, Eleitor do Brandemburgo, casou-se em 1594, com Ana da Prússia. A mãe advertiu-o de que” ela não era a mais bonita”. Quando, pouco tempo depois, a mãe morreu, de febre puerperal, o Eleitor casou-se com a irmã de Ana da Prússia. O pai tornou-se cunhado do filho e a mulher, sogra da irmã.
NailsR’nt us
Agora que em cada esquina abriu um Nails’R Us, as mulheres com unhas curtas da cor da pele e leito a descoberto ganharam ainda mais encanto.
Génese
A sábia natureza criou os corpos das mulheres com altos e baixos e pôs na cabeça dos homens o desejo impossível de agarrar os altos e preencher os vales. E deu à mulher macios estojos e ao homem uma peça de encaixe. A cabeça dos homens é um Lego primordial. Os homens sonham com uma viagem no espaço e no tempo, em que navegam e são navegados como se houvesse um propósito e um destino. O barco dos homens é o corpo das mulheres e a música celestial sopra palavras indistintas que podem querer dizer união encher meter e outras coisas que só na viagem são compreensíveis. Os homens e as mulheres, e veio-se a saber que não apenas eles e elas mas outros e outras que estavam por se descobrir, oh sim todos e quase todos e muitos mais de artigos indefinidos, tinham equipamentos complementares e instruções de utilização que só podiam ser lidas ou ouvidas na viagem. A viagem interestelar foi descrita em livros antigos e em todos os lugares. Os Upanishades, o Deuteronómio da Biblia dos judeus, o Tripitaka, A Origem das Espécies, A Teoria da Interpretação dos Sonhos, A Relatividade, o filme Interstellar, os escritos dos hindus que descobriram o Zero, O Livro da Restauração e do Balanceamento de Al-Khwarizmi, As Indagações Aritméticas de Gauss, As Mil e uma Noites, A Montanha Mágica e o Aleph de Borges. Estes são os livros que falam de uma coisa que são todas as coisas e a mesma coisa e que só pode ser entendida num momento em que os animais que fodem perdem o peso e os sentidos que não levam ao conhecimento.
Lydia Davis
Lydia Davis escreve frequentemente textos curtos que são classificados como microficção. O seu estilo é simples e o efeito surpresa resulta da ausência paradoxal de desfechos excecionais. Com ela parece que os acontecimentos comuns merecem ser contados. Por isso os leitores podem acreditar que a sua vida se tornou poética e que vale a pena ser escrita naqueles termos.
Epoché
Louis Menand conta que Simone de Beauvoir e Sartre se encontraram num bar de Montmartre com Raymond Aron, corria o ano de 1933. Tinham sido colegas da École Normale Supérieure, Aron fora para Berlin com uma bolsa e começara a estudar Husserl. Falavam com entusiasmo desse encontro, enquanto bebiam cocktails de alperce, conta Beauvoir no livro La Force de l’ Âge, em 1960. Aron apontou para o copo e disse: — Estás a ver, mon petit camarade, se fosses fenomenologista podias falar deste cocktail e era de filosofia que estarias a falar. Nas memórias de Simone de Beauvoir, Sartre empalideceu de emoção. No filme de 1978 de Alexandre Astruc, Sartre Por Ele Próprio, quando lhe lembram este episódio, ele confirma e diz: — Lembro-me bem, sim, era cerveja
João Aibéo
A imagem de felicidade que não o abandona é ter uma mulher espanhola, de Valladolid, por exemplo, ou de Soria, ou das Astúrias. E chegar a casa e ouvir as vozes de mulheres — as irmãs e a mãe da sua mulher— que falam animadamente na cozinha.
Kenneth Clark
Kenneth Clark foi um psicólogo negro norte-americano. Com a mulher, Mamie Philips fez vários estudos célebres no âmbito da Psicologia Social. Foi um ativista anti segregacionista na época da luta dos Direitos Civis. Em 1995, quando tinha 81 anos e lhe perguntaram que nome achava que o povo negro devia usar para se autodenominar, a resposta foi: “Branco”.
Oferta Literária
Norman Mailer e James Baldwin encontraram-se em Paris, em 1956, em Montparnasse no apartamento de Malaquais. Diz O Mundo Livre: “Estavam sempre em modo de exibição. Faziam uso da sua personalidade como parte da oferta literária.”