Arte Degenerada em Ossoduro
Veneza, 2024. Palazzo Venier.
Madalena tem um lugar de Gallerie Attendant na Coleção Peggy Guggenheim de Veneza. Ela conheceu o museu enquanto estudante de Erasmus em Veneza, voltou 3 anos depois e concorreu a esse lugar. Há anos que trabalha no Palácio Venier, dito dos Leões ou Inacabado, onde em 1949 Peggy Guggenheim estabeleceu residência e depois a sede da sua coleção de Arte contemporânea.
Munique, 1937. Exposição da Arte Degenerada (Enstartete “Kunst”).
Vejo fotografias da inauguração. Joseph Goebbels, o Ministro da Instrução Pública e da Propaganda do Reich, também responsável pela Câmara de Cultura do Reich, de gabardina assertoada, chapéu cinzento de gangster, ladeado pelo curador e pelo presidente da Câmara de Munique. O curador é Adolf Ziegler, o pintor preferido de Hitler, alcandorado a presidente da Câmara de Belas Artes do Reich (Reichskammer der bildenden Künste), um homem elegante, de gestos largos, lábios finos, sorriso aberto. Ziegler recolhera apressadamente dos museus da Alemanha, obras para a Exposição. Em duas semanas confiscara mais de 5 mil obras de arte de 32 museus alemães, das quais 650 encheram as divisões do Archaeologisches Institut, no Hofgarten, em Munique, escolhido para o efeito pela má iluminação e estreiteza dos corredores.
Mas milhares de quadros e esculturas foram retirados dos Museus, por essa altura. Os primeiros por iniciativa local de desordeiros arregimentados pelo partido nazi. E agora estes, também para corresponder à iniciativa de Goebbels, que Hitler aprovara, de fazer coincidir em Munique uma mostra da “arte degenerada” com a primeira Grande Exposição da Arte Alemã. Para a grandiosa Arte Alemã fora expressamente construído um museu, a Haus der Deutschen Kunst, entregue ao arquiteto Paul Ludwig Troost, que com a mulher, Gerhardine, dita Gerdy, foram referências máximas do neoclassicismo nacional-socialista antes de Albert Speer.
Munique, Julho de 1937. Inauguração da Haus der Deutschen Kunst.
Hitler caminha a passos largos. Tem Ziegler ao lado, de laço e casaco cintado, o cabelo cuidadosamente ondulado. Atrás caminha Goebbels. Os hierarcas nacional-socialistas usam trajes militares, são homens cinzento escuro. Uma figura agiganta-se ao lado do ministro da Propaganda. É uma mulher vestida de branco. Casaco, saia comprida, sapatos brancos de meio salto. É Gerdy Troost. Elegante, omnipresente sempre que procuramos imagens deste monumental Museu no ano da sua fundação. Ao lado de Hitler, numa visita antes da inauguração. Ao lado de Göring. E noutros contextos, ao lado do Führer na Ópera, a ouvir Wagner. Ao lado do Führer nas Portas de Brandenburgo. Em 1935-36 ela decorara os espaços interiores do Berghof, a casa de montanha de Hitler.
Haus der Kunst, 1934-1937.
A construção da Haus der Kunst em Munique recorreu a trabalho forçado. Durante o período da construção, diversos trabalhadores, incluindo prisioneiros políticos e membros de grupos perseguidos pelo regime nazista, ditos “associais”, foram utilizados como mão de obra forçada.
Heinrich Himmler, embora não estivesse diretamente relacionado com a construção da Haus der Deutschen Kunst, era uma figura proeminente dentro do regime nazista e chefe da SS. O trabalho forçado era uma prática comum em várias obras e projetos durante essa época. Para os planos de Speer de reconfiguração de Berlim, por exemplo, Himmler abriu dois campos de concentração, um em Sachsenhausen, às portas da capital, em Orianenbürg, e outro em Flossenbürg na Baviera, destinados ao fornecimento de mármores e materiais de construção. As condições de trabalho e de subsistência nestes campos eram desumanas, e para muitos trabalhadores tratava-se de um programa de execução disfarçado, aquilo que na novilíngua nazi se chamou Venichtung durch Arbeit (eliminação pelo trabalho).
Munique, 1937. Exposição da Arte Degenerada (Enstartete “Kunst”).
As pinturas e outras obras, esculturas, desenhos, gravuras e livros estavam amontoados ou expostos descuidadamente. As paredes pejadas de frases insultuosas para gerar “a todos choque e repulsa.”. Os cartazes da Exposição grafavam a palavra Arte com aspas (“Kunst”). Ao lado de quadros de Kandinsky, Picasso, Paul Klee, Chagall, Otto Dix, havia frases grafitadas dizendo “Insulto à mulher alemã”, “ Natureza vista como Pessoas Doentes”, “Será que isso é Arte?”, “Louco”. Nas vésperas da abertura, Adolf Ziegler incitara o “Povo alemão a vir para julgar por si próprio” a arte degenerada, “essas abominações da loucura, da insolência, da inépcia” e como ela estava em contradição com os valores superiores do nazismo que na mesma Munique, a Haus der Kunst glorificava.
Adolf Ziegler
Adolf Ziegler foi fundamental para a definição da Arte Degenerada, onde incluiu o expressionismo, o cubismo, o fauvismo, o dadaísmo, o surrealismo e de um modo geral a arte de vanguarda. Nas palavras dos teóricos nazis, a arte de vanguarda “insulta os Sentimentos Germânicos, destrói ou confunde as formas naturais ou simplesmente revela ausência de perícia artística”. Um quadro de Ziegler intitulado Die Vier Elemente ficou célebre por decorar a parede da lareira do apartamento de Munique de Hitler. “Os quatro elementos” é um tríptico que mostra o que para o imaginário nazi devia constituir a conformidade com a beleza feminina, gelificada para ócio e enlevo dos guerreiros do “povo nórdico”, presumíveis herdeiros da cultura clássica.
O comprometimento de Hitler na definição da política artística do nazismo era total. Visitava museus, desfolhava catálogos de exposições, revia as escolhas dos júris que nomeava, enfurecia-se com as que contrariassem as suas conceções estéticas que refletiam uma leitura simplista da realidade: ferozmente racista, militarista, fundada na absurda superioridade ariana e num fascínio pela guerra de conquista onde a “heroicidade era idealizada numa beleza estereotipada”. Ziegler e Gerdy Troost faziam parte dos júris que comissariavam e organizavam as exposições de Arte Alemã. As suas escolhas definiam, mais do que os textos teóricos dos nazis, aquilo que era a Arte Alemã. Emil Nolte, o pintor modernista de grupo A Ponte (Die Brucke), politicamente um apoiante do nacional-socialismo teve dois quadros expostos mesmo à entrada da Exposição da Arte Degenerada e foi proibido de pintar por uma carta assinada pelo próprio Ziegler. Não apenas de expor, mas de pintar. O mesmo sucedeu a Paul Ludwig Kirchner, o grande pintor modernista, que se veio a suicidar em 1938.
Munique, Julho-Novembro de 1937.
De 19 de julho a 30 de novembro de 1937 a infame Exposição de Munique, reservada a admissão de menores, foi visitada por dois milhões de pessoas. A grande Exposição da Arte Alemã teve 500 mil, no mesmo período. A fúria iconoclasta redobrou, depois disto, e o decreto de Hitler e Goebbels continuou a ser aplicado a todas as obras produzidas depois de 1910 e reuniu mais de 20 mil peças para destruição.
A Arte degenerada não foi toda queimada ou desprezada. Pelo contrário, demonstrando enorme realismo, os nazis usaram uma complexa rede de marchands oportunistas, através nomeadamente de países neutrais como a Suíça ou Portugal e de colecionadores e galeristas entre os quais Karl Buchholz, ligado à livraria de Lisboa com o mesmo nome. Já no século XXI o diretor do Victoria e Albert Museum de Londres publicou na net o livro que identifica mais de 20 mil obras roubadas e o que se sabe sobre o seu destino.
Alfred Ziegler, Gerdy Troost, depois de 1945.
Alfred Ziegler morreu em1959, numa aldeia alemã, depois de viver calmamente os anos após a guerra. A reintegração que pediu na Academia foi recusada, dado que tinha entrado sem concurso por interferência direta do seu amigo Adolf Hitler. Gerdy Troost recebeu de Hitler, em 1943, uma dotação de 100.000 Reichmarks. Depois da guerra esteve incluída na investigação em torno do tráfico de obras de arte pelos nazis. Foi considerada como “lesse responsable “ no processo de desnazificação, condenada ao pagamento de 500 DM e impedida de ter emprego público durante dez anos. Viveu na Baviera até à morte, em 2003.
Munique, Haus der Kunst, atualmente.
A Haus der Kunst, em Munique, é agora conhecida pelas suas exposições de arte contemporânea, apresentando obras de artistas que abordam questões sociais, políticas e culturais relevantes.
Algumas exposições que ocorreram recentemente:
1. “Zanele Muholi – Somnyama Ngonyama”: trabalho da fotógrafa sul-africana Zanele Muholi, conhecida pelas fotografias que exploram questões de identidade, género e raça.
2. “Shirin Neshat – I Will Greet the Sun Again”: da artista iraniana Shirin Neshat, com experiências e desafios enfrentados pelas mulheres das sociedades islâmicas.
3. “Sophie Calle – Parce que”: com as habituais misturas de fotografia, a escrita e performance.
4. “The Forgotten Space”: reunião de obras de vários artistas contemporâneos, examinando temas de memória, identidade e espaço no contexto pós-colonial.
Munique, 2024. Pinacoteca.
O quadro de Adolf Ziegler, interpretado como representação da apologia dos conceitos de feminilidade e fertilidade da raça superior ariana, está exposto na Pinacoteca de Munique.
Veneza, 2024. Palazzo Venier.
Madalena está no jardim que tem a sepultura de Peggy e dos seus “amados bebés”, em frente da escultura em bronze de Jean (Hans) Arp chamada Fruit-amphore que data de 1946 e tem 99 x 74 cm. Arp e Sophie Taeuber. Conheceram-se em Zurique, na exposição da galeria Tanner, em novembro de 1915. Arp era um exilado, desertor da Grande Guerra e escreveu que esse encontro foi “o acontecimento capital da sua vida”. Estiveram no cabaret Voltaire, no início da aventura Dada. Sophie era uma artista total. O par realizou obras de colagem, vitrais, tapeçarias e outras intervenções de arte têxtil, esculturas, obras a que chamavam concretas e que ambicionavam ser “objetos da Natureza”. As suas obras espalharam-se por uma colaboração que durou até 1943, data da morte de Sophie, num acidente estúpido. A obra de Sophie Taeubner e Jean Arp é um exemplo da fusão entre artes e ofícios, foi objeto de múltiplas revisitações e em 2017 de uma coleção da Fendi da autoria do costureiro Karl Lagerfeld. Fruto-Ânfora lembra a Ânfora de Sophie Taeuber, um elegante objeto dadaísta que representa um globo de polos achatados atravessado por um haltere de braços desiguais. Em 1928 eles decoraram o Café de l’ Aubette em Strasbourg. Os objetos decorativos foram destruídos pelos nazis.
Madalena é morena e franzina como Peggy. Como Sophie Taeubner-Arp. Olha uma vez mais em frente, o olhar percorre a curva da escultura de Arp e cumprimenta os visitantes: — Bem-vindos a esta coleção de Arte degenerada.
No Norte da India
No Norte da Índia, em Valabi, no ano de 571, um foral de duas chapas referido por John Keay na sua História da India conta que o marajá de nome Guassena tinha poderes extraordinários, entre os quais ser capaz de “fender as têmporas dos elefantes bramidores; os dedos do pé esquerdo lançavam raios deslumbrantes dos seus inimigos prostrados; em beleza superava o Deus do Amor, em brilho, a lua, em constância, o Senhor das Montanhas, em profundidade o Oceano, em sabedoria, o Protetor dos Deuses e em abastança, o Senhor da Riqueza”. Ele cumulava despreocupadamente os seus apoiantes de presentes e era “por assim dizer, a felicidade personificada da circunferência da terra”.
As chapas eram de cobre e os forais registavam, geralmente, doações de terras. O direito de propriedade privada sobre as terras era tão difícil de fazer aceitar, ou a sua doação precisava de tal legitimação que os forais registam punições para a sua infração: o crime era equiparado ao de “matar dez mil vacas em Varánassi e o castigo o de renascer como lombriga e viver assim oitenta e quatro mil anos”.
John Keay, ao investigar os soberanos maitracas de Valabi, descendentes de um general gupta, não conseguiu perceber que atividade misteriosa era essa que consistia em “fender as têmporas dos elefantes bramidores”.
Mas talvez se trate de um erro de tradução do sânscrito antigo em que as chapas, ou antes delas, as folhas de palmeira foram escritas. Ou talvez a longa permanência em paredes soterradas ou caves húmidas tenha tornado a escrita de difícil transcrição.
Alexandre da Macedónia, à frente de um exército de cinquenta mil homens, chegou vitorioso a Samarcanda no ano 327 a.C. Ele procurava o fim da terra firme, o grande Oceano do fim do mundo. Lane Fox, um dos seus biógrafos, escreveu isto. Depois escreveu que ele procurava ultrapassar os feitos de Dario e Xerxes e mais do que isso, de Hércules e Dionísio. Mais tarde disse ainda que Alexandre procurava uma espécie de iluminação. Ou, sendo muito jovem, procurava a imortalidade. A certa altura do seu livro, Fox escreveu que compreender “os seus motivos carecem de alguma imaginação”.
Em Taxila, Alexandre defrontou o reino de Poro, o que, na tradição grega “é tudo o que Ambi não é. Um colosso orgulhoso, intrépido e majestoso, descendente dos clãs védicos dos Pauravas.” Chegado ao reino, Alexandre convocou Poro para lhe prestar uma homenagem, ao que este respondeu que o local adequado era o campo de batalha. Alexandre, que nunca foi vencido, derrotou Poro, e capturou-o quando ele, apesar de ferido, persistia em resistir, montado no mais alto elefante.
Alexandre perguntou-lhe como esperava ser tratado. E o que Poro respondeu só o tradutor grego sabe. Em Alexandre ressoou como, dadas as circunstâncias, um pedido “extraordinariamente nobre e destemido”.
— Como condiz com um rei— terá dito Poro.
A entidade filosófica bramã, tal como o Verbo cristão, subsumiu todas as divindades, a alma humana e o divino e toda a criação, escreve Devahuti. Mas Keay sabe que bramã é uma palavra com “problemas de tradução inultrapassável “. Como darma, arta, danda. Bramã é um poder que têm os bramanes. Mas os bramanes não têm, em sânscrito, nenhum equivalente exato de poder.
A última das três inscrições de Junagade declara que “Foi atingida a perfeição”. E um peregrino chinês que visitou o reino de Chandragupta II escreveu que “o povo é abastado e não paga imposto de capitação, nem sofre de restrições oficiais.(…) Em todo o país as pessoas não matam seres vivos, nem bebem vinho, nem comem alhos nem cebolas”.
Com Alexandre veio um tal Calano. Keay conta que Calano fazia parte de um grupo de ascetas de Taxila que se juntou ao imperador e o seguiu no seu regresso. Calano e os seus companheiros andavam nus e ao contrair uma infeção respiratória Calano imolou-se pelo fogo “porque a morte tinha de ser gerida de forma a que só o moribundo perecesse”. Os gregos não compreenderam nunca a sua filosofia, porque embora tivessem encontrado palavras para traduzir e retroverter objetos comuns, desconfiavam das que referiam sentimentos ou conceitos abstratos. Chamaram-lhes gimnosofistas (filósofos nus”). Segundo um relato, Calano interpretou erradamente os seus sintomas e atribuiu-lhes uma gravidade exagerada.