(Madalena Zuarte entrevista o dr. Pichón R.)
— Boa noite, Dr. Pichón. Quero começar por lhe dizer que gostei de estar consigo, ao vivo, na última edição do nosso programa. Alguns dos nossos ouvintes tiveram, aliás, oportunidade de o ver, face a face, e de me comunicar as suas impressões.
— Olá, Madalena. Folgo com essas notícias. Está a referir-se à Festa do Osso, no bosque traseiro do Exploratório.
— Exatamente. O Dr. Pichón fez o favor de nos acompanhar nesse evento…
— Gostei muito de estar convosco e com os seus ouvintes. (Interrompendo)
— Pois hoje, algumas das pessoas que nos escreveram, pedem para o doutor falar sobre a amamentação. (Pausa). Um tema sempre atual.
— Falo do que a Madalena entender… Mas deixe-me dizer que esse tema me desperta reações muito contraditórias. (Pausa, durante a qual ambos trocam um longo olhar, cada um aguardando que o outro interrompa o silêncio, como dois atores que tivessem esquecido a deixa. Até que o dr. Pichón retoma a conversa). — Para muitos homens a amamentação é uma estranheza.
— Para muitos homens…? (Interrogativa, retomando o tom irónico dos últimos programas)
— Refiro-me aos parceiros das mulheres que amamentam. E começo por fazer uma advertência: estou a falar de cor. Já fui pai e nessas ocasiões não senti nada do que vou tentar descrever. E nunca nenhum homem me fez confissões, ou relatos, que permitissem supor ser algo mais do que mera desconfiança o que vou dizer.
— Desconfiança… De que desconfia, então?
— Deixe-me aproximar em círculos do núcleo da minha dúvida. Primeiro, uma constatação. A de que a amamentação é o culminar de um processo de transformação do corpo da mulher, o apogeu do dimorfismo, da sua diferenciação sexual. Nesse momento, as mamas da mulher atingem o grau V na escala de Tanner, um ponto que ocorre apenas na lactação.
—E…?
— A mulher é, nesse momento, um ser devotado ao Recém-nascido. Depois da brutal metamorfose da gravidez, da rendição à ocupação fetal, da retenção de líquidos, da transformação lordótica, um novo tempo chega. Dilacerada, esventrada, retalhada, ela vai agora alimentar o filho de outra maneira menos transfusional.
— A maioria dos homens vê isso… maravilhada.
— Não digo que não. Com o mesmo emaravilhamento com que veem as imagens que a NASA publica da Via Láctea.
— Acha mesmo isso? (Seca)
— Já lhe disse: nada me permite afirmar isto. Eu próprio fui pai, há bastantes anos. Mas era, como a maioria dos pais, excessivamente novo para me questionar profundamente acerca do que sentia. Além do orgulho pelo nascimento de um filho, admiração pela façanha daquela mulher, necessidade de mostrar aos profissionais de saúde e à família a maturidade que eles esperavam de um pai. E recordo, igualmente, um certo aturdimento.
— Aturdimento? Sentiu-se aturdido!
—Aturdimento, lembro-me bem. Nem fome, nem sede. Excitação, completude e aturdimento. O nascimento de um filho é certamente um dos momentos em que a realização de um ser humano prescinde de qualquer explicação, justificação, questionamento. Ser, simplesmente. Ser pai. Como um rio, uma árvore, uma rocha.
— Mas agora, algum tempo passado, o senhor olha para esse “milagre”, como lhe chamam, e o distanciamento dá-lhe a ilusão de ter uma opinião mais… racional. (Como se fizesse um esforço para compreender e o que entendesse não lhe agradasse) — E percebesse o que os jovens pais não estão em condições de o fazer. (Subitamente loquaz) — Como se o doutor fosse agora um espectador das Maravilhas da Natureza, de um episódio do National Geographic e pudesse olhar o parto de um bebé humano com os olhos de um estudioso da vida animal. Não lhe parece, dr. Pichón, um excesso de confiança, o seu? Um certo abuso, mesmo? (Estultícia. Arrogância. São as palavras que ela tem na frente). — O senhor pretende ser a consciência de pessoas que estão imersas na sua vida animal.
— Madalena, pediu a minha opinião. Não me pediu que repetisse os artigos da Pais e Filhos.
— Claro, doutor, desculpe ter-me envolvido excessivamente. Peço-lhe então que continue. (A voz dela denota sincero arrependimento)
— As minhas opiniões só a mim vinculam. (Hesita, como se renunciasse a continuar. Depois prossegue tentando alinhar ideias). O nascimento separa e reúne a cria humana à progenitora. O homem pode assistir fisicamente ao parto, nos nossos dias. Pode segurá-la, quando tal lhe for consentido. Mas a cria pertence à mulher. Como demonstra pelos movimentos da face e da boca, dirigidos para um lugar que não é o corpo do homem. Ele pode pegar, senti-la, cheirá-la, sopesá-la. Mas fá-lo temporariamente. O tempo que a mãe demora a expulsar a placenta, o maior órgão interno a seguir ao fígado e a recompor o seu corpo castigado.
— Não se trata de uma visão muito antiquada?
— Sem dúvida. Trata-se pelo menos de uma visão bastante antiga. Na história os homens foram sempre afastados do local do parto. Parteiras, mulheres mais velhas. Nenhum homem presente. (Sonhador) — Talvez a ausência de homens assegurasse a preservação da intimidade do corpo da mulher naquele registo animal. Não seria assim vista. Para poder continuar a ser a mulher amada, dona do seu corpo juvenil. Talvez esse recato beneficiasse, a médio prazo, a mulher.
—Mesmo que haja esse afastamento no momento do parto, o casal reúne-se em seguida.
— Sim, reúne. Mas ela envelheceu dez anos. Deixou de ter mamas. Tem agora úberes, tetas. O seu sucesso reprodutivo é, agora, assombrado pela dúvida láctica. Será que o leite é bom? O choro da criança e a balança são a espada de Dâmocles sobre o seu pescoço. São eles que decidirão. Uma legião de pessoas vigia a mulher: cientistas e divulgadores. Médicos, doulas, enfermeiras. Lugares sinistros como esses cantinhos do Bebé, maternidades amigas das crianças — como se houvesse maternidades inimigas das crianças —, ligas, conselheiras, avós, sogras, amigas, megeras, sites, blogs, fora, cursos de preparação, telefones. (Interrompido por uma lembrança). — Conhece a app diário de amamentação? Ou a app Sprout, Rastreador de bebé, Baby track, Registo de refeições, Baby book, We Moms, Amigo do peito…? Permitem registar a hora e a duração da mamada, de cada mama separadamente, e dão os resultados em médias e desvios padrão.
— Pois sempre pensei que esses registos eram úteis.
(O dr. Pichón prossegue, como se não tivesse ouvido. O tom dele é irónico, grandiloquente, parece delirar)
— Afinal o corpo da mulher tinha uma finalidade. Quase nada na Terra tem uma finalidade. Um sentido. Tudo é questionável. Desde sempre que os seres pensantes se defrontaram com a questão do sentido da vida, por exemplo. Podemos imaginar o primeiro momento de ócio dos nossos antepassados. O primeiro momento em que se libertaram da necessidade e começaram a criar o reino ilusório da liberdade. E no coração desse reino, com uma matéria desconhecida, estava inscrita a questão: qual o sentido da vida? (Madalena continua calada. Dir-se-ia alheada. O delírio do dr. Pichón prossegue)
— E no limite nada fazia sentido. Exceto o corpo da mulher. O lugar da vida e da sua reprodução era o corpo da mulher. Onde os fluidos se transformavam. Uma mulher era afinal uma árvore. Dava flores e frutos. Mas endurecia, perdia flexibilidade, gracilidade.
—Não percebo, dr. Pichón. Essa sua visão do passado dos sexos não deveria ter dado origem a um matriarcado? Como é que esse homem espectador, dador de esperma e vago caçador-protector, um bodyguard, podia aspirar a mandar?
— Precisamente assim. Inscrevendo a mulher no reino da Natureza enquanto ele construía a sua liberdade. Prendendo-a ao ciclo infindável da procriação. Gravidez, amamentação, educação dos mais novos, nova gravidez.
Deixe-me lembrar a vida de uma das vossas rainhas, Dona Maria II. Nasceu no Rio de Janeiro em 1819 e morreu em Lisboa, com 34 anos. Rainha desde os 15 anos. O seu reinado marca a transição da Coroa portuguesa, de uma monarquia absoluta para Constitucional, e teve numerosas sublevações, uma guerra civil, vários tratados. Durante os 19 anos do seu reinado, D. Maria teve onze filhos, entre os quais dois viriam a ser reis. E morreu no décimo primeiro parto. Uma vida igual à de muitas outras mulheres, determinada pela fecundidade, onde a vida reprodutiva se confunde com a vida, e nem a pertença à Casa de Bragança a salva de um destino cruel.
— Percebemos, doutor. Mas pode regressar ao seu raciocínio?
— Claro, vou tentar resumir. A luta da mulher pelos seus direitos fez-se primeiro dentro do terreno minado do determinismo biológico. As mulheres inteligentes do passado tentaram impor-se aceitando a contingência de reprodutoras, ganhando poder a partir das funções domésticas e de educadoras, através da influência e da presença culta nos salões. No século XX, as mulheres passam a controlar as gestações e reivindicam o direito à gestão do seu corpo. Mas tal como a placenta não é totalmente da mulher, a mama pertence também à cria. A amamentação é o que resta do controlo social do corpo feminino e o inocente bebé é o seu executante. A cria humana é um instrumento que perpetua, através da amamentação, um estatuto de dependência feminina. Entregue a si mesma e ao seu corpo reconstruído a mulher que amamenta deita-se ainda num leito vigiado.
— Não vê nada de positivo, então, na amamentação? (Tentando, a todo o custo, criar um ancora para o ouvinte)
— Claro que sim. Deve ser excelente para a cria humana. Ter alguém ao lado que fornece ao mesmo tempo proteção, calor e alimento. A figura de apego inicial. Onde é possível voltar a cada momento.
— A teoria do apego, de Bowlby (Nota-se na voz dela alguma esperança de salvar a sessão).
— A teoria do apego confronta-se com a teoria do investimento parental. (Há algum desalento na voz do dr. Pichón)
— Que postula essa teoria?
— Resumidamente, que o investimento parental é diferente nos machos e nas fêmeas. E que os machos desertam mais facilmente de relações em que o envolvimento é menor.
— Mas não foi por isso que as mulheres inventaram o amor romântico?
— Claro, Madalena. Talvez devesse perguntar às mulheres que amamentam o que aconteceu ao amor romântico.
— Posso perguntar. O doutor já me deu umas pistas sobre o que responderiam os homens das mulheres que amamentam.
— Engana-se, Madalena. As respostas são muito mais complexas. Não sei é se temos tempo para as desenvolver.
— Dê-me ao menos uma pista. (Alguma ansiedade)
— As mulheres selecionaram os seus parceiros segundo normas de elevada exigência. Nomeadamente de fidelidade, de sentido de responsabilidade, de capacidade de entreajuda, de parceria nos cuidados.
— Oh, que lindo…
— Esses homens fazem coincidir o aleitamento com uma baixa de testosterona. Estão cegos para os encantos das outras fêmeas, fora da lactação. Como nas sociedades pacificadas não precisam já de lutar, eles reservam as energias para a proteção real e simbólica da díade mãe-filho.
— E estarão dispostos para uma renovação dos votos românticos?
— Diria que sim, Madalena. Mas convém que a amamentação não se eternize.
— Convém também que acabemos este programa, doutor. Muito obrigado. Demos agora a palavra aos ouvintes.