Em jovem gozava de bastante liberdade.
No mês da praia, saído da infância. Um mês que parecia sem fim. Sem Outono. Depois das 13 horas, e até meio da tarde, a praia ficava deserta. Não havia especial consciência climática nem o perigo das radiações estava difundido.
O creme de praia, as bóias, as bolas de borracha e os Volkswagen da polícia eram Nívea, fator de proteção zero. Proteção de quê? A palavra ecrã solar estava por inventar. A sequência era escaldão/bronzeamento/estás tão preto. Havia a helioterapia. Na parte mais recuada da praia, junto ao paredão, os banhistas alugavam barracas estranhas, fechadas em todos os lados exceto nos tetos. Os ocupantes eram mulheres ou homens que tinham doenças para as quais se recomendavam as radiações solares. Ouviu as palavras psoríase. Úlcera da perna. Depressão. Ou talvez fossem só pessoas tímidas. Ou púdicas. Seja como for, ao princípio da tarde as mães levavam as crianças para o almoço, o banheiro encarregado da segurança recolhia o barco que esforçadamente mantinha a 30 metros da areia, na linha imaginária a partir da qual a natação era desaconselhada, os homens dos gelados e da bolacha americana desvaneciam-se com o cabo do mar, essa temível autoridade estival, especialista em comprimentos de tangas e tops.
Ficavam só eles. Alguns rapazes e uma ou outra menina, que viera a banhos com avós liberais ou em risonha demência. Tinham 14 anos. Eram os melhores banhos da estação. Lembra-se bem. O mar era límpido, frio, revigorante. A areia brilhava luminosa nos fundos. Mergulhavam, ouviam o rugido das ondas, sentiam a areia do fundo a roçar os peitos, davam algumas braçadas de olhos abertos, aspiravam a ser benticos, pelágicos, até que a sede de ar os fazia subir para o sol, de braços esticados para o sol.
Lembra-se da água nas concavidades do corpo, da plenitude, da suspensão do tempo, da reverberação do ar, da perfeição e lisura dos corpos. O mar era litoral, azul, azul, espumoso. E eles eram maciços, invulneráveis, impávidos, sem passado, sem horários, sem fome nem sede. Depois, aqueciam na areia, falavam num dialeto tribal. Falavam de nada e aquele nada estava cheio de significado.
Agora entra no mar. Mudou a hora. Não é o mesmo mar. Ninguém parece dar conta, mas é muito fácil de perceber que não é o mesmo mar. É mais escuro, mais cinzento, há uma espuma estranha, viscosa, oleosa, lipídica. Em alguns locais há algas, farrapos verdes de rápida multiplicação, dinoflagelados, floração vermelha.
É um mar com perigos. Agueiros, correntes de retorno concentrado, correntes marinhas, marés, poluição, plástico, águas vivas, peixe aranhas.
O corpo tem agora uma história. Cicatrizes. Altas doses de radiação UV são nocivas para todos os organismos vivos pela seguinte ordem UVC>UVB>UVA.
Por momentos o contacto é semelhante. O corpo parece mover-se automaticamente, sem comando consciente, sulcando a água. Uma corrente envolve os ombros, desliza pelo dorso, numa goteira escavada sobre as vértebras pelos músculos proeminentes, os trapézios, os grandes dorsais. A mesma penetração das axilas. A projeção do corpo pelo estiramento simultâneo das pernas. Os braços unidos afastando as águas e depois executando a braçada seguinte. A apneia e depois a respiração síncrona retomada.
Por um momento acredita. Ou não duvida. Simplesmente existe, como a água, o dia, a hora.
Mas quando o cansaço sobrevém falta qualquer coisa. Ou há algo em excesso. Uma consciência, um cheiro, madeleine, um cansaço, o peso dos órgãos, demasiada interoceção, anamnese.
Oh, o cérebro humano, o néocortex!
Seria preciso tanto? Tanto autoconhecimento? Tanta ciência? Tanto afastamento e tanta aproximação da matéria? Tanta espiritualidade? Não poderíamos simplesmente ser? Estar? Sem pensar sobre ser e estar. Simplesmente ser, como as moléculas da água em redor ou os eucariontes, os protistas. Viver. Sem procurar o sentido da vida. Viver. Sem se interrogar sobre como, porquê, para quê. Ir para o Tahiti sem se preocupar com o sítio de onde se veio ou para onde se vai. Executar os movimentos necessários à locomoção na água, guiados apenas pelo movimento, e pela adequação do movimento à ação de deslizar, baixar a meia água, ser levado pelo refluxo da massa de água, a pele impermeável, mas alguma coisa entre os músculos, fendas entre o grande redondo e o infra espinhal, aspirando a ser guelras, e os corpúsculos que debaixo da pele sentem, a despolarizarem-se em sequência.
O que mudou nele foi a confiança. No seu corpo tornado mortal. No mundo, superpovoado, milhões de seres a comerem-se uns aos outros, sem pausa na sua voracidade, o mundo lugar de resistência e de adversidade.
Foi a mudança do mundo? Foi a sua? Se mudaram os dois porque não mudaram na mesma direção? A decrepitude do mundo e a sua? A mudarem de tal forma que nenhum se aperceba e de que a memória lentamente desvaneça.
Descer para o Sul, com as fêmeas em cio e depois regressar ao Atlântico Norte para as ver largar os ovos e morrer.