Gerhard Richter
Kerze (Vela), 1983
Óleo sobre tela
95 x 90 cm
Gerhard Richter, nascido em Dresden em 1932, é talvez o mais destacado astro do firmamento artístico contemporâneo. Desde há muito que as mais influentes galerias o representam. As retrospectivas em instituições como o Museu de Arte Moderna, em Nova York, ou a Tate Modern, em Londres, certificam o prestígio do pintor. As suas obras, como seria de esperar, atingem hoje valores extravagantes, senão obscenos. Deixemos de lado, no entanto, o sucesso da sua carreira. Que tal não corrompa o nosso encantamento.
Do trabalho de Richter reconhecem-se sobretudo as foto-pinturas (paisagens, retratos, naturezas-mortas), imagens marcadas por um particular efeito de desfoque, e a mais pura pintura abstracta. Detenhamo-nos brevemente nas foto-pinturas. Sabemos que a fotografia sempre o fascinou, desde a mais tenra idade. Nos anos sessenta inicia uma extensa colecção de imagens, reunindo fotografias de jornais e revistas, imagens documentais, fotografias pessoais e anónimas. Em face da incessante e massiva presença da fotografia, surpreende-o, a dado momento, um novo modo de a apreciar. Richter reconhece-a liberta das convenções que sempre associou à arte e à pintura. A imagem fotográfica surge-lhe sem estilo, sem composição, sem artifícios, isenta de julgamentos. Quando pinta, então, a partir de uma fotografia, deixa do o fazer em função da sua visão pessoal ou da sua aprendizagem. Afasta-se de uma estilização, esquece critérios e modelos. Uma fotografia, para Richter, é «quase cem por cento imagem», algo incondicional e autónomo. Interessa-lhe a imagem pura, por assim dizer. Deste modo se compreende que «não usa a fotografia para chegar à pintura»; usa, pelo contrário, «a pintura para chegar à fotografia».
Alguma coisa nos seduz nesta imagem. Nela transparece, de facto, um certa sobriedade de efeitos, como se o pintor não quisesse impor um estilo, um «modo de ver». Mas de imediato surge a questão: o que terá levado Richter a querer pintar a fotografia de uma vela? Não podemos admitir que tenha simplesmente escolhido um motivo banal. Na verdade, não podemos esquecer que a chama de uma vela é um poderoso símbolo.
O fogo, desde logo, é o primeiro dos elementos. Desejaram-no os primeiros homens que sonhavam com a magia dos deuses. Quão longínquas e ao mesmo tempo quão próximas se encontram as sensações de bem-estar ou os devaneios que continuamente se animam diante do lume nocturno, da fogueira presa num anel de pedras enegrecidas. Mas se o fogo proporciona imagens de conforto e bem-estar também nele se revela sempre uma intensidade, a certeza de uma mudança rápida, sendo isso que o distingue dos restantes elementos. O fogo precipita a transformação do mundo, faz acelerar o tempo. O fogo é ainda um fenómeno que se contradiz, uma vez que lhe atribuímos valorizações opostas: une a vida de uma chama à vida de uma estrela, associa o ínfimo ao imenso; desfaz e recria as substâncias; é efémero e eterno, íntimo e universal; é um símbolo de pureza e pecado; é a imagem da vida e da morte. O fogo parece ser a prova mais clara da existência. Quando o pensamento racional quis desvendar-lhe os segredos logo as imagens ancestrais e as intuições adormecidas o contagiaram. Fogo real e, ao mesmo tempo, todo ele metáfora!
O óleo de Richter remete-nos para essa espécie de suspensão mágica da realidade que ocorre quando se acende uma vela durante a passagem de um temporal de Outono e se contempla longamente a sua chama no conforto de um quarto isolado, enquanto a luz agressiva de uma lâmpada não é restabelecida. A chama está ali, frágil e delicada. Parece lutar para existir, resistindo à ameaça das trevas. A chama parece consciente de si. Nela queremos fundir-nos para assim alcançarmos a origem do seu mistério, algo que incansavelmente se consome e se renova. Quando se acende uma vela temos a impressão de testemunhar o primeiro instante, a origem de um pequeno-grande cosmos. E se a chama treme logo tudo treme. Quem sonha próximo de uma vela acesa não adormece como diante da lareira. A imaginação activa-se sem cessar. Da unidade de uma única chama escapa-se uma multiplicidade de fogos, uma abundância de imagens.
Como não lamentar, nos dias de hoje, o fim da leitura à luz da vela? Sob os presságios de uma chama éramos incitados a parar de ler, a parar de pensar e a eliminar a presença incómoda da consciência, e de imediato nos perdíamos em divagações, entre as distantes reverberações do texto. E era ainda a chama de uma vela que lançava um indistinto enredo de sombras na folha em branco do sonhador que desejava escrever. Só ele poderia interpelar a chama, falar consigo mesmo e, de repente, tornar-se poeta. Só ele poderia participar na imagem de Jean Wahl e repetir: «Ô petite lumière, ô source, aube tendre»…