Gostar de nós
“I love the taste of me”, diz Bonnie Bakeneko enquanto come os seus próprios mamilos retirados cirurgicamente[1].
Nhac nhac.
Trata-se duma incrível performance de autocanibalismo num processo de transformação corporal, não a caminho do ser masculino, mas numa jornada onde o género não é um destino final, mas uma viagem.
Como ser pansexual, é cego ao género[2].
A performance é uma terapia autoadministrada após décadas de maus tratos e incompreensão por parte do pessoal médico.
A terapia é um processamento emocional corporal.
O desafio é formidável.
E se conseguíssemos comer os nossos traumas?
Se conseguíssemos reparar, através da ingestão e da digestão, os nossos tumores e cancros psíquicos no formato de um bife?
Uma vez digeridas, retirávamos apenas os nutrientes e eliminávamos o resto.
O género artístico que lida com estes desafios chama-se body horror[3].
Na expressão cinematográfica é alimentado por mestres como David Cronenberg, Clive Barker e Tom Six. Para os que gostam de adicionar metal, Tetsuo, uma versão literal de Iron Man[4].
A literalização das dores e do sofrimento permite-nos capturar o inimigo.
Permite-nos enfrentá-lo. Já não se esconde mais atrás daquele nada, daquele fumo, daquela maré tóxica de vazio difuso.
Anda cá para fora, dor.
Vamos resolver isto com os punhos.
Apanhei-te dor, em letras. Apanhei-te em tinta. Apanhei-te em sangue. Apanhei-te e comi-te ritualisticamente, e nem sequer soube esquisito.
O único problema deste caminho é que tem dois sentidos.
O balde esvazia e enche.
As tensões, irritações, sensações, impressões, acumulam-se.
Há que as deixar sair através de apertões, gases, lavagens.
Há que fluir.
Há que ter bons intestinos.
Há que ter estômago.
A cinderela dos baldios
Buscar. No es un verbo sino un vértigo. No indica acción. No quiere decir ir al encuentro de alguien sino yacer porque alguien no viene. Alejandra Pizarnik
Cinderela é a que espera. Vestida de cinzas mornas, habita um deserto emocional. O seu aspeto não é brilhante, mas aconchegante. É capaz de reter as virtudes aninhada em tarefas mundanas, domésticas, inferiores. Na companhia de animais, sustenta-se com o ar mínimo à espera de dias melhores.
A espera.
É um ato de sobrevivência e busca. Um convite incessante a quem não vem.
Cinderela é uma princesa. A sua história acaba bem, com a chegada do príncipe encantado. Mas na verdade, o desfecho da história é secundário. O importante é o ato de resistência em si mesmo. Resistência a uma terra baldia, que desprovida de roupas e beleza, tem tudo para o ser.
Os baldios são espaços de príncipes.
Só os príncipes podem ver a potência pura.
Pyotr Kropotkin[5] era um desses príncipes.
Renunciou o título aos 12 anos e caminhou na terra, incontaminado.
As cinderelas e cinderelos são seres que não são dali.
Estranhos numa terra estranha que se desvaloriza a si mesma.
Na terra que já foi terra[6], esperam e buscam.
Às vezes falta-lhes a virtude da paciência.
A paciência não é uma sala de espera.
É uma caminhada que se inicia solitária, a companhia pode vir ou não.
You, Cinderella of the Wastelands, have chosen the way of the hero—and the gods alone may guess the end of your path. Jack Parsons to Marjorie Cameron, Cinderella of the wastelands[7]
[1] Your body is not a temple. https://vimeo.com/395952227
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Pansexuality
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Body_horror
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Tetsuo:_The_Iron_Man
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Peter_Kropotkin
[6] Paulo Monteiro. Terra que já foi terra: análise sociológica de nove lugares agro-pastoris da Serra da Lousã. Vol. 2. Edições Salamandra, 1985.
[7] https://tsunamibooks.jimdofree.com/2016/11/23/cinderella-of-the-wastelands-a-poem-by-marjorie-cameron/