Fausto,
Mando-te, em anexo, uma nota de leitura. Penso que pode ter interesse para a tua revista por vários motivos. Em primeiro lugar porque a Bazarov é talvez o acontecimento editorial que se cruza, pelo menos temporalmente, com a revista Osso. Depois, porque a reflexão de Fontenelle se revela muito atual. Face à imensidão de questões, continuamos a passar o nosso melhor tempo preocupados com “a debilidade do amor”. Finalmente, se nada se passou na última noite, será correto considerar que a noite não existiu? A imprecisão é uma marca do real ou da nossa capacidade em o apreender?
Rosso
Anexo:
“Ando a ler um livro que me parecia maravilhoso. Uma Coisa Elementar, de Eliot Weinberger, da editora Bazarov. A tradução é de Nuno Quintas.
Na página 119, a propósito do tópico vórtice, ele escreve sobre o escritor francês do século XVII, Bernard Le Bovier de Fontenelle e do seu livro Diálogos sobre a pluralidade dos Mundos. Este Diálogos (“Entretiens”) é um exercício de divulgação das noções astronómicas de Descartes e de Copérnico, apresentado através do relato de uma longa relação peripatética entre a formosa marquesa de G. e o autor. A marquesa fica desorientada com a revelação de que o universo é muito vasto, que cada estrela pode ser o centro de um tourbillon, semelhante ao que se move em torno do sol. Fontenelle responde que o número infinito de outros mundos não diminuem o encanto da marquesa.
Fui ver o livro de Fontenelle. É um pouco fastidioso. Estava à espera de uma marquise de Merteuil e esta duquesa parece apenas desorientada, aflita e assustada com a perda do geocentrismo. Mas a questão que me apoquenta não é apenas essa. Escreve Weinberger:
“Em cinco noites de Verão consecutivas, Fontenelle dá um passeio por jardins ao luar com uma bela marquesa que não nomeia, a conversar sobre as estrelas.”
Na verdade, o livro, que data de 1724, não relata cinco, mas seis noites, sendo certo que a sexta noite não alterou os resultados do cortejo.
A dúvida é: enganou-se Weinberger no número de noites em que se passa a ação? Ou trata-se apenas de uma gralha?
Esta questão podia não ter existido. Mas a partir do momento em que foi formulada, como a petite tâche que o amoroso de Barthes descobre na face da pessoa amada, mancha definitivamente a capa branca da edição Bazarov.”
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Fausto, querido
Esta noite acordei eram 5:17mns. Da floresta que está por detrás da minha casa vinha um silêncio estranho. Lembrei-me do livro de John Le Carré cujo título é A Rapariga do Tambor, não sei se leste? E da manhã em que o terrorista árabe acorda na cama com a mulher inglesa que o traiu. Uma atriz. Também ele se surpreendeu com o silêncio dos campos em redor. E disse-o à mulher. Ela desvalorizou. E foi com essa reação que ele percebeu que não dormia com quem cria. Mas era tarde demais, porque as tropas especiais anti terrorista já entravam dentro de casa com a brutalidade cénica do seu vestuário, armas e coreografia. Escrevo-te agora, porque estas coincidências parecem ter algum significado e temo sempre que o dia o desfaça. A claridade da manhã enfraquece a realidade. Enquanto te escrevo, por exemplo, apercebo-me de que o silêncio é interrompido pelo brado de um bufo, que soou três vezes, separadas por um intervalo de 14 segundos. Não me perguntes como sei que este intervalo foi precisamente de 14 segundos. Mas soou por três vezes, claramente, uma vocalização que me pareceu corresponder à do bufo real, igual à que podes ouvir na gravação de 03:21 minutos com a data de três de janeiro de 2014, do site STRPI, Sons de aves de rapina noturnas em Portugal, aquela em que nos segundos finais, a fêmea levanta voo, soltando o ‘alarme’ (‘risada do Diabo’). As três vocalizações que ouvi foram produzidas em 28 segundos, e decorreu exatamente o mesmo espaço de tempo entre a segunda e a terceira. Antes, depois e entre elas foi o silêncio.
Hortense
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Luís
Lê o livro que te levei ontem. É ela em estado bruto. Alcoólica e desbocada. Torrencial. Convida-a para a revista. Precisamos de uma escrita assim. Arranjas mais duas como ela e tens as novíssimas cartas portuguesas.
Fausto
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Fausto
Estás parvo. Convida-a tu. A última vez que falei com ela foi há uns anos. Ela tinha acabado de publicar o segundo livro, Vigilância Massiva, e andava a promovê-lo com o editor marado. Disse-me que quando passava por aquelas termas abandonadas ao pé do Pinhão, entre os plátanos que devem ser os maiores do mundo, arrastando, com as sapatilhas, as folhas caídas, se lembrava de mim. Era nessa altura que se lembrava de mim. Francamente, aquilo soou-me a ameaça.
Luís
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Luís
Ela nunca escreveu Vigilância Massiva. Esse é o título de um livro do Rosso. E qual ameaça? Deixa-te de dramas. Convida-a e pronto.
Fausto
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Luís
Gostava de aceitar o teu convite. Mas não o posso fazer por três ordens de razões. A primeira, e é definitiva é porque estou em pousio. Escrevo sempre. Porque não viveria se não o fizesse. Mas tudo o que escrevo é para o meu editor. Combinámos que lhe enviaria a tralha toda que me fosse saindo e que um dia tomávamos uma decisão sobre o destino das coisas. É minha convicção que só lhe envio merdas. Mas ele diz-me que não, que tudo aquilo se articula lindamente e que antes da Páscoa me faz uma surpresa. Escrevo sobre o que me vem à cabeça. Insignificâncias. Que se agigantam e tornam relevantes. Olha, quando escrevo é porque naqueles momentos, aquelas coisas, acontecimentos, objetos, adquirem um significado bestial. Escrevo à pressa, como se aquilo fosse uma revelação destinada a perder-se, se não a registasse.
A importância do papel higiénico húmido, por exemplo. Não foi a invenção do século, mas que avanço! A diferença que há entre o kids, mais pequeno e jovial e os lençóis do Mini Preço, que lembram logo lares, incontinência e senhores acamados.
A bancada da casa de banho é, aliás, uma grande fonte de inspiração. Tudo isto é demasiado íntimo, eu sei. Estou a ver-te a levantar a sobrancelha.
A vantagem de não publicar, mesmo nessa revista semi-confidencial do Fausto para a qual me convidas, é que posso escrever sobre estes temas que me fascinam. Nem que seja por um minuto. Um minuto de agitação dos neuromediadores, em centros nervosos superiores ou inferiores cujo nome desconheço, é melhor do que um dia inteiro de embotamento, ou de distração. É por isso que agora registo esses minutos, onde quer que esteja. A humidade do períneo do Rosso, por exemplo. Que perfeição. Que cheiro, que saudável, que juventude… Cheiramos o bom funcionamento dos órgãos. Como cheiramos a doença. Li isso algures, mas já sabia. Conheces o começo do livro do Rilke chamado Os Cadernos de Malte Laurids Brigge?
A segunda ordem de razões pela qual não posso escrever na tua revista é que não escrevo em revistas. Pela mesma razão por que o Joaquim Manuel Magalhães não aceita participar em Antologias. Não é desconfiar dos teus gostos literários ou dos do Fausto. Se me convidam, têm bom gosto, claro. Mas é a mistura com textos que não conheço que me assusta. Acho que a proximidade contamina. E não tendo nada em absoluto contra a mistura, prefiro, neste caso das autorias, ser apenas responsável pelo que escrevo. A terceira razão apaga-se ao pé da importância das outras, pelo que acho preferível nem a nomear.
Hortense
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Fausto, querido
O Luís anda a chatear-me com convites. Calculo que, como de costume, seja um intermediário. The go-between. Dei-lhe com os pés. Se queres literatura, fala com o Rosso. Quando todos pararem de escrever ele continuará. Comigo a coisa pia de outra maneira.
Cada vez mais me defronto com a impossibilidade da escrita.
Um dia destes visitei um atelier de relojoaria. Não sabia que ainda existiam. Numa rua central de Lisboa, nas caves de uma loja, há uma oficina de relojoaria. Os instrumentos eram-me familiares. Toquei-lhes, fascinada, como se estivesse a tocar na minha infância, toquei-lhes com os dedos do meu pai e do meu avô enquanto alguma coisa em mim os nomeava.
Pinças e alicates, bigornas, dados e embutideiras. Limas, agulhas, alargadores de ponteiros, pinos, abridores, chaves para fundos de roscas, prensas, punções, lupas, caixas de silicone, anéis de vedação, suportes, sovelas, barras de molas, vidros, ferramentas para remover e colocar vidros…
Um mundo com o seu léxico próprio.
Ontem o meu primo F. teve uma formação de 4 horas sobre cafés. Uma espécie de suporte básico da vida dos cafés. O suporte avançado é de três dias. O curso de formador… calcula? As unhas de gel, para serem colocadas precisam de desidratador, primer, máquina de luz UV, extensores de unhas, gel. O procedimento dura duas horas e a manutenção, uma hora.
As bochechas de porco demoram 24 horas a temperar e 3 horas a estufar.
Um ceviche de peixe, na receita de Ramón, demora 4 horas a “cozer” no frigorífico.
A demolha da aveia dura 8 horas.
Madame Bovary demora 9 horas a ser lida. Ana Karenina 20 horas. E é preciso ler rapidamente como um crítico do Expresso.
As traduções de Crime e Castigo fizeram nivelamento de linguagem, adições, mudança de léxico para termos mais suaves.
Não há palavras que cheguem, nem tempo, para a complexidade da realidade.
Temos de nos contentar com resumos, visões superficiais, parciais.
Temos de escolher entre ser especialistas do infinitamente pequeno ou generalistas de um fragmento mais alargado.
Nem a poesia, a grande intuição, nos salva. Rilke: odiava tudo o que não fosse a exatidão.
Resta-nos a fé. E ter sorte na escolha da fé.
Hortense