Número 10

7 de Agosto de 2021

A CANFOREIRA DE BENCANTA

A díade sagrada e os seus detratores

LUÍS JANUÁRIO

Um bebé humano é um ser maravilhoso. Morno, altricial. Arredondado e macrocefálico. Rosado. Frágil. Senhor de uma surpreendente capacidade vocal. Olhando em redor com um trespassante olhar de Gioconda. Abrindo os braços para abraçar. Com mãos e pés feitos para agarrar.

Um bebé humano é um ser tenebroso. Poiquilotérmico. Pequeno e ocupando todo o espaço de uma casa. Quase imóvel e convocando todas as deslocações. Uma máquina de sugar e de eliminar. Duzentos e cinquenta mililitros de urina. Sete fraldas descartáveis por dia. (1) Um número de toalhetes, babetes, compressas e outros desperdícios, impossível de quantificar. Emite continuamente sinais incompreensíveis. Dorme 18 horas e parece insone. Não faz nada by the book. Ou não temos o livro certo?

Uma mulher humana é um ser maravilhoso. Especializada em compreender e interpretar. Em cuidar. Em estar atenta. Executar simultaneamente várias tarefas. Seduzir. Agradar. Proteger. Ordenar a confusão. Modular a sua voz segundo registos variados. Ornamentar o corpo. Pintar os lábios imitando a excitação máxima e ensombrar os olhos de mistério profundo. Usar panos para revelar o corpo. Mexer-se como quem dança.

Uma mulher humana é um ser tenebroso. Que se anula. Que se deixa possuir. Penetrar. Violar. Que deixa que o violador hereditário a inocule do esperma pegajoso. E que uma célula que contém a informação de um estranho, minúscula, agitada numa competição de morte, entre no majestoso óvulo que parecia perdido. Para que, depois, um organismo multicelular se aloje numa cripta do útero e fabrique um órgão destinado a naturalizar esta invasão, a controlá-la segundo os seus interesses, a perder a vontade própria e a ser só um corpo de ocupação e acolhimento, nutricional, uma barriga de aluguer, um comando regulado. Que perde substância cinzenta cerebral, nesse processo de ocupação. Perda diretamente proporcional ao apego ao futuro ocupante, sugerindo um processo adaptativo de longo curso. (2)

Um bebé humano é um ser maravilhoso. Uma mulher humana também. Mas a díade mãe-filho fica bem nos filmes do National Geographic ou da Odisseia. As alterações produzidas por meses de ocupação feto-placentar são visíveis. A mulher está sensível aos movimentos do bebé. E a mais nada. À sua respiração. E a mais nenhuma. Aos vagidos da cria. E a mais nenhum dos ruídos do mundo.

O presunto pai, a quem a história da civilização ocidental concedeu um lugar no parto, doutrinado pela parentalidade, sobrevive como pode. Elidido, acredita que o seu estado será temporário, que recuperará aquela mulher, que conquistará um lugar no afeto da criança. Tudo isto é pouco consciente, como a maior parte dos eventos da savana, desde o riso das hienas à comédia humana.

Esta estória pode ser contada de várias maneiras. A maior parte das vezes como um conto de fadas. Um filme de Natal da Fox Life. Há uma legião de aduladores de mulheres grávidas e puérperas, prontos a entrar em cena para refazer e reforçar este natal glorioso. (3) Para escrever a palavra Amor. Amor de mãe. Amor da tua Mãe. Coração, barriga, paixão. Como a tatuagem do combatente ultramarino, no tempo em que as tatuagens eram ingénuas na pele dos mancebos rurais.

Mas é preciso dizer algumas palavras rudes. O feto e a placenta não empoderam a mulher. Fragilizam-na. Poem-na à mercê de uma legião de aduladores oportunistas, que escrevem o livro de instruções e o livro de reclamações. Como as mulheres mais velhas desapareceram ou foram desautorizadas, tal como a ciência, surgiu um sem fim de educadores. O pressuposto é de que a gravidez e o parto, o puerpério e o Recém-Nascido são acontecimentos transcendentes, dominados apenas por uma plêiade de sábios naturalistas. E de que tudo deve ser ensinado formalmente. Segundo o corpo de conhecimentos em que se confia. O momento da concepção. A gravidez como processo laboratorial. A preparação para o parto. O plano do parto. O nascimento. Os primeiros dias. O bebé deve ser ensinado a encontrar o mamilo. O mamilo a encontrar o bebé. O bebé a abocanhar a teta. A teta a ser envolvida pela boca analfabeta.

Existe um paradoxo fundamental nesta operação. Os saberes médicos são desautorizados, o modelo médico objeto de desconfiança, aparentemente visto como desrespeitador dos processos naturais e construído em função dos interesses e da autoridade ilegítima do médico. Mas o sucedâneo é um processo pouco transparente, em que a mulher precisa de ser alfabetizada, ajudada e monitorizada em todos os momentos.



Advertência: A maioria dos bebés humanos não são nem maravilhosos nem tenebrosos. A maioria das mães desses bebés não são nem maravilhosas nem tenebrosas. A maioria dos homens não tem esta participação tão apagada que o texto sugere. O autor escreve assim porque as famílias felizes não têm história.



Notas :
(1) O enfermeiro Neuranides Santana apresentou ao 57º Congresso Brasileiro de Enfermagem um estudo do Peso da Fralda Descartável e do Controle de Líquidos Pediátrico onde figura uma interessante tabela com a idade do bebé, o peso, o número de dejecções, o peso das fraldas descartáveis secas. Ele introduziu o acrónimo FDPS e uma revisão à calculadora de fraldas, anteriormente usada.
(2) Hoekzema, E., Barba-Müller, E., Pozzobon, C. et al. Pregnancy leads to long-lasting changes in human brain structure. Nat Neurosci 20, 287–296 (2017).
(3) O psicólogo Eduardo Sá escreveu 14 livros, até à data. Nos títulos figuram invariavelmente as palavras amor, paixão, mãe, barriga, coração, querida, mãe.